segunda-feira, 30 de abril de 2012

O corpo

Depois de umas semanas de céu azul, a gente se esquece que o dia pode amanhecer cinza-chumbo. Era uma manhã assim. Lá estava o corpo boiando - preto no azul-piscina.
Os três faziam a ronda durante a noite pelo extenso jardim, pelo campo de futebol ao lado, em torno da piscina. Pela janela era possível vê-los trabalhando,compenetrados em seus afazeres de guardas: cheirar; ouvir, latir.
As duas damas, mãe e filha inseparáveis, deram o alarme.
Da casa não ouviram. Talvez pensassem que se tratava de algum gambá, um gato...
Enquanto retiravam o corpo, pude ver, pesarosa, o pelo lustroso, encharcado, e os sinais de afogamento por exaustão.
Qualquer um que caísse ali e tivesse quatro patas não sobreviveria. Ele deve ter nadado muitas horas. Não era cachorro de se entregar assim por pouca coisa.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Espinho

Subiu na bicicleta e começou a pedalar. Um ruído estranho, arranhado, de lata tornou o passeio impossível. Viu que o pneu traseiro estava murcho. Ficou muito triste.
- Pai, estraguei a bicicleta! Estou muito pesada para ela.
Já estava na fase de usar somente uma rodinha auxiliar.
Então o pai explicou:
- Acontece mesmo com todas as bicicletas. É preciso chamar um - como poderia dizer - consertador de bicicletas que vai trocar a câmara, uma espécie de boia que fica dentro do pneu.
Sua infelicidade era palpável em torno dela.
Por que sentia, lá no fundo que destruía o que mais amava.
O consertador trocou a câmara e disse assim:
- Era um espinho, agora está tudo bem.
Pedalou um pouco na garagem, mais calma e conformada. Não era uma rosa.
Já era o momento de tirar a segunda rodinha.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Cavalo velho!

Caminhava pelo calçadão da avenida e vi a minha frente um homem-totem de quase dois metros que andava a passos largos. Na medida em que me aproximava reparei em seu cabelo aparado bem rente à nuca, branco como o boné que usava junto com a camiseta azul folgada, a bermuda preta logo abaixo dos joelhos e bons tênis... Foi quando vi as panturrilhas! Os músculos saltavam sob a pele levemente bronzeada, eram músculos de verdade.
Passei por ele sem muito esforço e segui em frente. Alguns minutos depois ouvi um trotar ligeiro e firme  atrás de mim. Era ele! Corria com leveza, a respiração compassada e lá se foi o septuagenário fazendo história. Via apenas uma mancha azulada tremulando, quando ele dobrou a esquina em direção à praia.
- Ele deve ter sido atleta a vida toda - pensei, me conformando.
Dobrei a esquina também e de novo passei por ele. Estava parado e conversava com uma moça de uns 40 anos, que meio sem graça, desviava o olhar. Ele segurava com a manopla esquerda o antebraço direito dela, logo acima do cotovelo e a puxava para si. Falava enquanto sorria mostrando as gengivas rosadas em um "Fleming" libidinoso.
Do calçadão da praia pude vê-lo novamente trotando na ciclovia.
Ele olhava para algum ponto a sua frente, longe, muito longe.


sábado, 21 de abril de 2012

Conversa com o tempo

Oi, tempo, como vai? Como vão a tempestade, a chuva branda e a ventania?
Eu ando saudosa, pode trazer a felicidade de papel passado que combinamos?
E os documentos que acertamos, assinamos e reconhecemos? Não é  por ser passado, que não quero vê- los... Afinal são meus...
Sua memória está falhando, eu bem sei, mas pode relembrar às vezes os melhores dias e repeti-los?  Passar o filme da boa lembrança, aquele em que todos em casa se emocionaram?
Vivenciei minhas experiências todas com vontade e zelo, e quero revê-las. Algumas, deixe estar. Sabe ao que me refiro. Mas muitas vão ser um alento para continuar.
Bom, ainda não tive o privilégio da plástica, mas nas velhas fotografias vejo uma promessa que não se cumpriu em mim ainda.
 E hoje, estou amassada, não dormi bem a noite.
Você, pelo jeito que me trata, pela beleza em que amanheceu, dormiu, fartou-se de sono.
Teria sonhado?
Ah, conte-me! Adoro seus sonhos. Quero sonhá-los também.

domingo, 8 de abril de 2012

Uma rota abençoada

Que sorte, menina, você estar em Paris. Se o tempo estiver bom, visite a querida Champs e traga histórias frescas com manjericão.
Faz tempo que deixei de desejar Paris, quem sabe se  assim, esnobando, se fizer pouco caso, consiga vê-la novamente, minha cidade de luzes.

Tudo tem seu ciclo que não se repete mas alcança uma escala alguns metros acima do ciclo anterior. Nessa escada em ascensão, olhe para baixo e veja quantas vezes já esteve neste mesmo meridiano.
Paris será sempre nova e College também; até Uberaba terá outros momentos inesquecíveis.
É hora de retomar uma rotina, aquela que diferencia viver e estar vivendo.
Um deck espera por você e seus meninos também.
Mãos a obra, que logo tem mais viagens.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Palavra

As palavras, eu as vejo por toda parte. Cada pessoa é muitas centenas delas às vezes empilhadinhas com primor, outras como uma montanha de lixo. É preciso garimpar nessas bibliotecas o que há de mais recôndito; quantos tesouros.  Trabalho com frases inteiras desconexas, nem a dona delas sabe que as  têm. Vou desfiando o tecido, enrolo em novelinhos e está tudo pronto para recomeçar a contar histórias.