domingo, 31 de janeiro de 2010

Verso

Aprendeu a recitar um versinho e treinara bastante antes de se aventurar. Quando teve certeza, chamou mamãe e falou, com as mãos nas costas e balançava um pouco o corpo.
Sabia de cor, mas ansiosa disse "drentro".
Mamãe nem percebeu e a abraçou com força, - que gracinha!
Mas ela não gostou de ter errado. Ficou muito tempo com o pensamento em círculos, como pude? Como pude errar?
Franzia a testa; e se eu errar de novo quando papai chegar?
Assim, na hora de declamar, ficou muda. Balançava o corpinho da mesma forma, mãos nas costas, mas a cabeça pendia para o lado, não queria, não queria errar.
Disse apenas: -" Outro dia."
Mamãe não insistiu, que reconhecia em si aquela teimosia.
Umas semanas depois não se lembrava do verso e nem se lembrou também de que tinha errado.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Céu de estrelas

Um apagão transforma uma noite em céu de estrelas.
Retornamos às horas ao pé da fogueira-vela, quando o melhor a fazer é conversar fiado.
Sem os ruídos comuns de TV, ventiladores, computadores e Ipods, o silêncio forçado aguça os sentidos.
Na escuridão, somente com o som do rádio de pilha, atravessamos  horas de nostalgia e damos risadas.
Dos últimos apagões esta é a melhor lembrança que tenho.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A febre

Ao meu lado sentou-se uma mulher com febre.
Dela emanava um cheiro quente de cânfora e resignação.
Estava quieta, encolhida, sonolenta. Espesso, grisalho e fosco, seu cabelo estava cansado.
Não me decidia a levantar porque o ônibus estava lotado e teria que ficar em pé pelos 45 minutos que faltavam para o fim do trajeto. Pensei em respirar mais devagar, fingir que não temia seu estado contagioso, mas estava alarmada.
Ela acordou de repente, pressentiu seu ponto (quem anda muito de ônibus tem este dom), levantou fungando e sofrida desceu para a chuva, sumiu embaralhada às pessoas coloridas e comuns.








terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Ondas

As ondas, em seu balanço cósmico, de quando em quando murmuram: Volte, volte.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Avidez

Fui ver o mar, precisava da imensidão.
Somente ela nos devolve a humildade e a consciência de ser o grão, o quase nada.
Ao olhar a opulência orgulhosa  e ávida das águas, chorei um pouco.
Lembrei-me de um navio que certa vez vi no horizonte e que em seguida perdeu-se.
Bobamente, fiquei com pena de mim, eu que tenho tanto a perder.
Um casal feliz, cheio de assunto, andava em ótimo ritmo na ciclovia e eu compreendi.
Eu tenho esta felicidade também. E muitas outras.
Não posso permitir que o medo espalhe suas tintas de polvo.
Minhas rosas vermelhas olham para mim, boquinhas abertas. Têm uma avidez serena.
A felicidade é verde, preciso aguar minhas plantas.
Só depois vou descansar um pouco.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Os sapatos novos de André

São muitos pares. De diversas partes do mundo, muitos ainda com etiqueta.
Porque sempre que encontrava um sapato ou um tenis que lhe agradava e servia, André comprava dois pares por precaução ( ele era um mestre em precauções).
O irmão mais velho herdou vários, calçavam o mesmo número, gostavam dos mesmos tipos.
Agora é preciso passeá-los por aí...
Para que se respeite o jeito cigano e andarilho de seu dono.
Para que seus sapatos percorram os solos mais diversos e inusitados do mundo.
André certamente trilhará, agora descalço, todos estes caminhos e descaminhos.
E que conserve o bom humor de páprica e beba conosco todos os vinhos que ainda vamos degustar.
Saúde, querido!


quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Ter sido

É muito dificil não ser.
Porque não ser significa ter sido.
Não ser é o arcabouço de célula vazia entre muitas outras células que interagem.
Não ser é  branco e um pouco sujo, é desolação, é o peão perdido do tabuleiro de xadrez.
Ter sido para ser lembrado.
Ter sido por ter sido amado.
Estamos sendo sem ele.
Esta é nossa realidade, triste, triste.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Gosto de 51

As montanhas displicentes repousam sobre o horizonte próximo.
O sol está a pino e o dia arde.
Volto de uma despedida e venho melancólica fazer um inventário daquele fim de ano, deste começo de ano.
Sinto ser um parafuso sendo apertado madeira adentro dia após dia.
Estou profundamente dentro da vida e ainda respiro o hálito do dia em que nasci, magra e feinha.
51 anos depois, olhando a exuberância do meu corpo maduro e frágil, reconheço que me agarrei à vida, apesar de desdenhá-la às vezes.
Gosto de viver.
Gosto de contar histórias, de burilar as palavras, sei que criei, que venho criando.
Ouvi dizerem que o melhor desejo para o Ano Novo de cada um é que suas promessas se cumpram.
Gosto de quem consegue cumprir.
Não fiz muitos planos, apenas quero continuar.
Gosto de quem continua.