quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Línguas


Anita acordou no meio da noite e ouvia vozes. Na escuridão escutou o Arnaldo discutindo em Japonês. Ou Mandarim? O marido gesticulava e sacudia os ombros enquanto falava. Cutucou. Nada. Esticou o pé gelado até encostar-se à panturrilha dele; nem sinal. Para evitar levar um soco se a conversa virasse briga de mão, arrastou-se para a borda da cama King size e ficou ali no cantinho esperando acabar o assunto. Engatou em um sono intranquilo e sonhou que se preparava para o próprio casamento com um oriental e todas as suas tradições.
- Arnaldo, você fala Japonês?
- Hein?
- Estava discutindo com alguém durante o sono; e aquilo para mim era grego!
(Cá entre nós, ela queria entender a conversa.)
Ele tomava um gole de café e depois sorriu e ponderou:
- Talvez fosse Húngaro.



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O berne da questão


É sempre assim!
Quando Helena vem "buscar fogo" no Rio - estilo bate e volta - ainda no vácuo de sua ausência, começo a procurar sarna para coçar.
Desta vez coincidiu com a tragédia em Santa Maria, e sei que todas as pessoas que têm filhos adultos jovens, começando a viver plenamente, se colocaram no lugar daquelas que perderam seus queridos.
Estive mais introspectiva e sensível; é quando começo a procurar.
Sofro pela lagartixinha sem o rabo que corre pela parede e se esconde atrás da gravura.
Investigo uma velha cicatriz no braço do Miguel, estaria a ferida se abrindo novamente?
Vou lá fora e chamo o cachorro. Vasculho cada centímetro de pele, limpo as orelhas com esmero, abro-lhe a boca: - ahhhhhh.
Cismo que se coça demais no pescoço. Agora está lambendo a pata que coçou o pescoço! Meu Deus, com certeza é berne!
Busco meu arsenal investigativo, raspo os pelos da região - a pele fica vermelha, escarificada e poreja micro gotículas de sangue.
Procuro a abertura por onde a larva respira e nada encontro. Cutuco, aperto, espremo, sinto que a pele está espessada!
Estou perdida. Começo a tratar assim mesmo, coitado.
Depois, exausta, venho aqui para o meu canto e choramingo um pouquinho de saudades.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

"Solaridade"


Quando amanheceu nublado, imaginei que o melhor seria fechar as cortinas e nublar também debaixo das cobertas. Acontece que tinha muito que fazer, entre outras coisas tratar de soprar as nuvens, desanuviar.
Mãos às obras!
Abri as portas, tratei do cachorro, revolvi a terra sob a buganvília e o beijo.
Fiz as contas, combinei com a cozinheira o cardápio de hoje e de amanhã e fui ao supermercado  buscar o que faltava.
A chuva de verão, torrencial e rápida,  alertou-me para os riscos de ficar ilhada naquela atmosfera agressiva.
Foi só um susto. Como quando vemos de relance o que não há; e em seguida compreendemos a realidade.
Ufa! 
Saí do carro em pleno temporal e cobri a cabeça com as sacolas retornáveis que sempre trago comigo. Lembrei-me de uma cena muito comovente, de um macaco em plena selva que utilizava  folhas de palmeira para proteger a cabeça da chuva na floresta.
Fiz minhas compras, e quando voltei para o estacionamento, havia sol!

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Anfitriã

Quando recebo visitas, quero agradar!
Meu coração excitado, minha cabeça a mil...
Quero arrumar o quarto, quero encher o jardim de flores, mesmo no inverno; quero programar uma serenata, mesmo que chova a cântaros!
Planejo guardar o cachorro em um sono de dias, para que nem hóspedes nem animal se ressintam.
Preparo comida para um batalhão. Quero ter de tudo um pouco, para sentir meus convidados e fazê-los felizes. Quero apaziguá-los nessa Cidade de Deus; que não se importem com as notícias do Datena da TV e que se julguem no paraíso anunciado pelas autoridades cariocas.
Quero que se sintam mais felizes que em casa, se isso fosse possível.
Compro cerveja light e cerveja de verdade, de origens variadas, como se as marcas fizessem parte de um carteado onde eu tenha que vencer.
Compro água com gás e sem gás, de diversas fontes.
Abasteço o quarto de hóspedes de mimos e caprichos.
Abasteço meu coração de uma enorme vontade de tornar meus hóspedes viciados em prazer.
Espero acertar.
Espero que queiram voltar um dia.
E que eu possa sentir plenamente a alegria de ser boa anfitriã.



quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Onde anda a Luluzinha?


Quando nasci, não havia um anjo torto a me dizer para onde ir, apenas uma parteira que mastigava os dentes. 
Tinha muito cabelo - assim me contaram - e era parecida com a Meméia... Alguém sabe quem era?
Coitada da Meméia... Personagem de revista de quadrinhos, um aprendiz de bruxinha má - http://www.youtube.com/watch?v=KUKudnxVV8E - acompanhou minha infância e adolescência e quase tomou conta de minha vida adulta também, não fosse eu ter encontrado ajuda especializada para meus tormentos íntimos.
Amadurecida à força, já em plena e torpe meia-idade, ainda busco uma bruxinha má que me transforme em qualquer ser aproveitável, alvissareiro.
Bom, já não era sem tempo, parece que me encontrei. 
Estou na madeira do náufrago, no capim do burrico, na estrela que é Dalva.
Estou onde não estive e sou o que ninguém esperava.
Escrevo. Essência de mim. E me recordo de que desde sempre, escrevi.
Espontaneamente. Para exorcizar demônios. Para fazer as contas.
Para sobreviver.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Fragilidade




Quando ela sumiu pelo corredor, de braço dado com o empregado da TAM, esperei um pouco, pensando que a veria de volta ao meu abraço para despedir-se novamente.  Mas ela tinha ido embora de verdade, mais uma vez.
Enquanto me dirigia para o estacionamento do aeroporto, ainda queria dar o braço para o ser, agora invisível e fluido que me deixara.
Vaso de porcelana antiga, precioso, frágil.
Parece que qualquer trepidação, ou algum sopro, pode craquelar sua estrutura, mas mesmo assim, segue em frente e caminha.
Conta histórias de seus filhos, a minha história; e se emociona como se tivesse acontecido ontem; e somos quase todos cinquentões.
Trabalhou cada centímetro de uma toalha de crochê belíssima que herdei e que estava cheia de machucados e roturas. Enquanto, com agulha fina e linha branca, cerzia e caseava,  ia dizendo: - É muito delicada, lave à mão, nada de ferro, nada de máquina, sem alvejantes.  
Depois me conta como era teimosa; como é teimosa e eu tenho no sangue e no coração a certeza disso.
O tempo vai engambelando sua teimosia, agora vai devagar e se cansa depressa.
Está muito pequena e magra, e eu – grandalhona. Nossos cabelos estão tingidos com Henna da mesma cor, então às vezes nos confundimos.
Será dela ainda este fio em meu casaco?
Será meu esse fio que encontro em seu travesseiro quando vou trocar a roupa da cama que ela deixou?

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013


Muito felizes!

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Gato voador

Foi uma sucessão de fatalidades.
Eu convidei, ela aceitou; ela veio.
Bruno foi cuidar e escondeu a toca do sofá.
Dona Mariana foi arrumar o décimo quinto e abriu a janela.
Nicolau se assustou.
Quis fugir, voou.
E o abismo olhou de volta para ele.
Ah, que pena, Nicolau.