segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Cores

Não há sombras hoje, não há contornos, o cinza esbarra em tudo e um chantilly de nuvens cobre completamente o céu. É isso que vejo aqui do meu canto. Mas é só um ângulo, uma vista e há sintonia porque estou um pouco triste de saudade.
As perspectivas, como são várias! Portanto só a minha nada vale.
Uma chuva mansa, mansa sem nenhum ruído molha o chão.
Quando chegar o outono, eu prometo, vou lhe fazer uma visita.
Até lá as cores terão voltado e eu que ando divagando àtoa estarei também colorida.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Jararaca

-Você está com medo?
-Medo? Não e você?
-Não tenho medo de nada, disse balançando a cabeça.
-Nem de cobra?
-Cobra? ...só um pouco.
-As vezes aparecem Jararacas por aqui...
-Onde???
-Neste mato em volta dos condomínios. Ouvi dizerem que de tempos em tempos aparece alguém picado de Jararaca lá no "Copador".
-Para de brincadeira, vai.
O João e o Paulo estavam em suas bicicletas. O Paulo era muito pequeno e não alcançava o selim. Pedalava em pé sobre o quadro, gingando o corpo para os lados.
Ficaram em silêncio por algum tempo.
E o João - vamos apostar corrida até o semáforo!  Na velocidade, o Paulo mais parecia um macaquinho de circo.
No meio da disputa o João freou a bicicleta, derrapou, passou por cima do guidon  e foi se aboletar um metro à frente. Levantou-se num átimo e gritava: a jararaca, a jararaca!
O Paulo foi chegando devagar e caiu na risada.
É um galho de árvore, seu burro!
E foi acudir o amigo com o coração disparado.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Mudança

Havia um caminhão de mudanças parado aqui em frente quando saí pela manhã. Estava curiosa para conhecer os vizinhos recém chegados, mas só vi os funcionários da transportadora carregando caixas e mais caixas para dentro da casa. Um pouco atrapalhada porque não tinha como sair com meu carro, segui em frente e intrigada, vislumbrei dentro do caminhão. Além das caixas, havia um suporte com roupas masculinas, uma geladeira enorme de inox, um móvel pequeno laqueado que não soube definir e dois colchões enrolados e amarrados.
Os colchões! Despidos dessa forma, forçados a uma posição de extrema fragilidade, expõem a alma dos donos. Quase não podia olhar, mas fiquei paralisada, como se estivesse diante de algo bárbaro e a todo momento pensava: Que horror!  Que horror, meu Deus!
A mudança continuou pelo dia afora e quando voltei agora à tarde o caminhão vazio mostrava sua bocarra bangela e desarmada. Alguns cobertores do tipo " sapeca-negrinho" jaziam pelo piso.
Nada de colchões. E nada de vizinhos.
Mas a força daquela imagem persiste e estou certa de que tem muito a ver com a lembrança de que há alguns anos também estivemos expostos assim e eu nem tinha me dado conta.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Intenções

Saiu tristíssima da academia. A moça enrugada e escura que bateu de frente com ela embaralhou seus sentidos, misturou alimento com lixo orgânico. Porque para ela, as pessoas são todas boas e bem intencionadas. Com seu temperamento sensível e as gotinhas de ódio e inveja que viu brotar no olhar da outra, amassou-se como a um papel de rascunho que se joga fora. O dia todo ficou assim amarfanhado, os prazeres recolhidos, até mesmo os mais viscerais. A saciedade por exemplo, não a encontraria mais durante um bom tempo. Sentia uma inquietude e buscava o que? Onde?  Aonde?
Tarde da noite, enquanto o sono não vinha - outro prazer perdido - ponderou sobre o infortúnio de milhares de pessoas em situações muito mais críticas que um desamor pontual. Gente que nunca pode saciar-se. Gente que nunca dormiu justamente.
Era tão pequena, tão pequena e pouca.
Magoada, o coração franzido, tratou de pensar na vida tão boa que tinha. E já adormecia quando compreendeu que não foi ela quem perdeu, mas a pobre moça. 

domingo, 20 de fevereiro de 2011

A falta que os amigos me fazem

No vai e vem das ondas, conheci pessoas que passaram a fazer parte da minha vida regularmente. Aprendi a conviver e lidar com as diferenças, deixei-me envolver pelas semelhanças, por gostos idênticos, conversas íntimas e muitas risadas espontâneas. Tornou-se tão natural este contato; e a rotina fez parecer que era para sempre. Mas, não. Sopra um vento mais forte e  pessoas queridas vão viver em outras praias; algumas  vezes quem partiu fui eu  e a convivência  tornou-se um ocasional reencontro. 
Eu sei que a amizade é um amálgama que ajuda a construir nossa consciência, então incorporamos um tijolinho aqui outro ali desses queridos  em nossa forma de ser. Gosto de pensar assim, de ter esse conforto. A saudade, a falta que esses amigos me fazem passa a ser uma forma inusitada de incorporar tijolos e crescer interiormente.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Bonitinha

Quando Aninha pegou a boneca sentiu que algo não ia bem. Sua preferida estava fria e silenciosa. Ninou um pouco a pequenina, falou com ela - ô Bonitinha, não fica assim não, viu? E andava de um lado para outro no quarto com a boneca no colo. Depois colocou-a sentada sobre a cadeira e penteou os cachos loiros. Alguns fios se desprenderam e ela fez uma bolinha e jogou no chão. Estava sozinha em seu mundo fantástico e nem o som da TV na sala atrapalhava sua concentração. Mamãe estava assistindo a um filme e Aninha sabia pelos ruídos da casa que estava em segurança. " Voce está com fome, Bonitinha? Vamos fazer um lanche."
E assim se passaram as horas até que as duas adormeceram abraçadas e um tanto atravessadas na cama.
A menina não sabia ainda que era ela a Bonitinha, uma boneca que precisava de carinho e de uma comadre para afastar a solidão.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Sinuca

Depois do café da manhã costumo deixar a toalha sobre a mesa e seus farelos de pão. Sem perceber, enquanto converso, dobro o tecido sobre as minhas migalhas como fazia meu pai. Quando me lembro dele e dói muito a saudade faço bolinhas de miolo caso algum passarinho venha. 
Aos nossos hábitos, esses pormenores que o outro percebe mais que a gente e que nos definem, somam-se posturas e atitudes singulares daqueles que amamos e tanto quanto o DNA apontam nossa ascendência. É assim que como bolas de sinuca nos tocamos, nos chocamos e batemos e nos afastamos, até que todos encontrem sua caçapa de direito. Repare como muitas vezes há duas ou três bolas em um mesmo buraco enquanto outro permanece vazio. O ambiente e o acaso são responsáveis por esta variação. Cá entre nós, estou certa de que se fosse possível optar estaríamos todos juntos no mesmo lugar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Despedido

Despedido.
Lá fora o rapaz denso como uma estrela de neutrons caminha sob a chuva forte e não sente. Voltou-se para dentro e procura o buraco negro onde devem estar todas as respostas. Respira sem consciência e pára no farol aguardando o trânsito. Na faixa de pedestres chuta um papel molhado que gruda em seu sapato e segue pela avenida agora encharcado e ignorante. Os assaltos continuam ocorrendo por perto. Centenas de pessoas saem do buraco do metrô, abrem seus guarda-chuvas e atrapalham quem vem atrás. O tumulto é inevitável mas ele passa ao largo, desdenha a multidão. Segue bem rápido agora e se perde na densidade de sua chuva que nunca terminará.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Promessa

Julguei que fosse brincadeira, apesar de ter sentido uma firmeza diferente naquele olhar que desdenhei.
Fiz a minha cama e fui jogar majhong no notebook, perdia e ganhava eventualmente; desisti muito tempo depois e ao deitar caí  exausto e sonolento sobre o travesseiro. Mesmo assim não conseguia relaxar depois de tanta aventura virtual. Eram quase seis horas da manhã quando peguei no sono. Debaixo do meu cobertor, o ar condicionado geladinho, embrenhei por caminhos secundários na floresta onirica. Ali, não havia dor nem desconforto;  alguns cavalos trotavam em mim e era meu gato Manhathan que se enrodilhava sobre meu peito . Havia asperezas no chão que pisava, mas podia chutar com força e jogar pelo despenhadeiro dos sonhos,  os livros que estavam de fato sobre a cama. Fui caminhando assim e gotas começaram a respingar sobre meu rosto. As vezes podia beber uma agua cristalina que se condensava sobre minha boca e mesmo assim não acordei. Havia uma certa tensão na cena do sonho, vozes um tanto ríspidas, mas meu sono era profundo. E então caiu sobre mim a tromba dágua! Acordei completamente encharcado e vi o balde vazio nas mãos dela. Tinha sido uma promessa e ela tinha cumprido.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Sugestão

Quando fui correr hoje pela manhã, passei em frente ao Colégio Carolina Patricio que fica aqui dentro do condominio. Pela grade do portão pude ver um casalzinho de pitocos de uns três anos. A menina segurava  e acariciava a mão do garotinho com suas duas mãos de encontro ao peito. Os olhos dele estavam vermelhos. Acho que conheço esta menininha! Estaquei, voltei uns passos, cheguei bem perto ao portão e perguntei: Helena? Ela fez que sim e eu de novo: voce é a menininha que veio lá de longe? Ela fez assim com a cabeça e falou: Ele quer a mãe dele! Explica que ela vem buscá-lo mais tarde. E insisti: Eu sou amiga do... do... acostumada a chamar pelo apelido e emocionada, o nome não me vinha às falas. Pensei em dizer do seu novo irmão mais velho, mas me pareceu confuso. Ah, lembrei: eu sou amiga do Lucas! E ela, virando a cabecinha de lado perguntou: Onde ele tá? Daí não tive mais dúvidas - era ela! Voltou a insistir que o Guilherme queria a mãe dele.  Diga a ele que a mãe vem mais tarde; ela balançou a cabeça, olhos tão brilhantes quando as perolazinhas nas orelhas e um sorriso desarmante. Nunca tinha visto as crianças tão próximas ao portão de saída, estavam um tanto desgarradas do grupo que eu podia ver de longe. Voltei para minha corrida e nem sentia mais o chão.
Chuviscava quando passei por lá na volta seguinte. Todo mundo recolhido, cheiro de grama e chuva.  Continuei correndo, esperava o sol sair. Não teve jeito, a chuva apertou e eu desisti.
Em casa pensei no assunto com calma. É provável que não seja a mesma criança. Todas as assertivas foram forjadas e como uma cartomante interior induzi as respostas que queria, ou precisava.
De qualquer forma foi uma manhã emocionante Faz um tempo que não me sentia assim, a três palmos do chão.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Dirigir

Quando ia fazer o vestibular estudava demais. Era uma rotina pesada e cheia de angústias. Muitas vezes quando  estava no meu limite, outras  só por desfastio e amizade, a mamãe saía comigo tarde da noite para passearmos de carro e aliviarmos as tensões. Em geral ficávamos caladas, só curtindo a proximidade uma da outra e relaxando. A mamãe aprendeu  a dirigir mais tarde e eu saía bastante com ela  quando ainda estava aprendendo; passamos por algumas  aventuras mas nada que eu me lembre para contar. Sorte minha que foi com ela que aprendi a ser tolerante com os novatos, porque depois precisei acompanhar o Miguel, dirigindo em São Paulo e recém ingressado no reino dos motoristas.
Agora é a Helena quem aprende a dirigir. Ela também vai experimentar São Paulo como pista de treino. Sei que em pouco tempo estará segura e confiante nesta nova empreitada, sempre foi assim.
 Depois de tê-la transportado para todo lado, colégio, festinhas e cinema, fico aqui pensando nos rodopios, nessa circular ascendente que fez de mim uma carona  de minha mãe, depois uma motorista para Helena e com certeza daqui uns anos  serei carona outra vez mas  de minha filha.
Espero que ela me leve ao Shopping para tomar sorvete e que  tenha muita paciencia comigo!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O nome dela é Helena

Houve uma vez um país muito grande e bonito demais, mas um tanto abandonado. Era tanta terra, tanta, eram sertões inteiros sem alma vivente a não ser as almazinhas dos bichinhos do agreste que comem pau, pedra, cactos e sobrevivem. Também era uma terra santa, dadivosa se bem tratada, farta se bem nutrida. Ali, vivendo entre os animais e o sol, entre os bicharocos e a terra batida,  à revelia de seu destino, crescia uma menininha.
O casal tinha vindo do sul, que maravilha! Visitavam tudo, olhavam cada renda da feira, compravam com parcimônia, bastava para eles encher os olhos.
Naquele dia  visitaram um sítio e foi quando a viram. Seus olhos se tocaram e se embaçaram. A pequenininha chegara vinda do terreiro das galinhas e segurava uma pena que passava pelo rosto, feliz com seu brinquedo. Veio para perto e tocou com a mãozinha suja o colo, o vestido da mulher marejada. E foi ficando, foi encostando de mansinho, ora nela, ora nele e os dois juntos não eram mais um casal completo. Levaram para o sul a menina dos calangos. Que foi com eles como se fosse natural, como se esperasse apenas e a vida toda, pelos pais que teria. 
Dizem que foi feitiço. 
Eu tenho minhas dúvidas. Acho que foi uma troca de bem querer. As vezes temos demais e só repartir alivia. As vezes temos de menos e a fome de amor nos faz mais sensíveis ao afeto que transborda pelo chão. 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Frustração

O menino urrava! Ela segurou firmemente em seu antebraço e o arrastou até o carro. Coloque o cinto! Deu a volta e sentou-se ao volante. Da próxima vez voce fica esperto. Ele chorava ainda, não era birra, era raiva, muita raiva.  Foi direto para o quarto jogou longe os tênis e entrou debaixo do chuveiro, vestido como estava. A água quente derreteu suas defesas e agora ele chorava de mansinho.
Quando a mãe veio chamá-lo para o jantar ele dormia enrolado na toalha de banho, o cabelo molhado sobre o travesseiro. No banheiro, em uma poça amarfanhada jazia o uniforme do colégio. Ela suspirou, catou tudo para levar até a área de serviço, olhou para ele preocupada, depois fechou a porta com cuidado. Dentro do quarto, na penumbra do sono intranquilo ele soluçava ainda.  

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

São Bernardo

Hoje conheci um cão São Bernardo, filhote ainda mas imenso, que passeava feliz com o novo dono. É um dos inúmeros animais que foram abandonados ou perderam sua família nos desabamentos de Teresópolis. Um cão de uma raça utilizada para resgate de pessoas ser resgatado e amado assim faz a gente pensar. Dono e cachorro parecem  felizes, pelo menos por enquanto - o São Bernardo é muito grande e sofre muito com o calor do Rio de Janeiro. Há controvérsias mas já ouvi dizer que são  um pouco custosos para aprender comandos; outros criadores afirmam que são muito inteligentes e dóceis.  
Onde será que ele está morando agora? Em uma casa grande o suficiente para se exercitar, ou ter para onde ir enquanto cisma com as tempestades de neve da vida? Ou em um apartamento desses tantos prédios que temos na vizinhança onde ele ficaria enjaulado a olhar aborrecido pela janela? 
 Com aquela expressão afobada e rindo de orelha a orelha lá se foi o belo cão. Tentei encontrá-los de novo pelo condomínio, mas desapareceram. Será que sonhei?  Queria dizer ao dono - olha, não vá desistir desse colosso, hein? Ele vai dar muito trabalho, sempre tem problemas de pele e assim por diante.
Eu sei que lá no fundo o que eu queria mesmo era ter tido a sorte de poder adotá-lo.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A bela e a fera

Era uma figura escura, suja e sebenta. Usava muito cabelo em todo o corpo e cabeça e a barbicha do bode. As mãos gordinhas, unhas enormes à direita. Era baixo, bebia muito, fumava muito, comia demais e depois, meu Deus, chupava os dentes.
E ela, moça tão bonita e gentil apaixonou-se. Mas não por ele, por si mesma.
Quando se olhavam no espelho, prontos para a noite, era a bela que ela via. E o contraponto, tão horrível besta, só aumentava seu prazer em ver-se.
Mas desta fera não escapará. Ao revés da fantasia, a realidade desfigura o belo a cada instante, até que um corpo amorfo e indolente e as sombras do que foi nem se olham mais.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Chuva

Enfim, a chuva veio lavar a alma da cidade. Ainda estou apreensiva porque há bonança agora mas como estão todos? Espero que não tenha havido muitos estragos por aí e que todo mundo possa chegar bem em casa no paraíso dos trópicos.

Cookies

Estou de dieta, ainda tentando perder os quilos extras do fim do ano, mas dessa vez sigo uma orientação profissional para comer balanceado. Sempre que faço dieta sinto uma vontade compulsiva de fazer comida. Para os outros. Capricho nos detalhes e quem estiver por perto, engorda.
O Miguel adora cavaca - um doce portugues à base de fubá, que é como uma broa  bem dura e com açúcar cristal salpicado por cima. Mas ele também adora cookies - sempre comprávamos na Kopenhagen quando tinham uma fabriquinha de cookies na própria loja. De longe a gente sentia o cheiro tão bom. Agora só compramos prontos, industrializados e em geral tem chocolate ou uvas passas. Miguel sempre preferiu os básicos e eu decidi experimentar fazer uma fornada para ele. Escolhi uma receita na Internet, comprei os ingredientes que faltavam - açucar mascavo e aveia. Achei muito fáceis de fazer (nem se compara ao trabalho de fazer bem-casados ou cupcakes) e em pouco tempo já sentia o cheiro delicioso. Para dar forma usei moldes próprios que ganhei da Renata em sua última visita. Provei um pedaço, ficou bom...  Mas a melhor parte é ver o Miguel experimentar e ficar feliz.