quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Mr Hyde

Tenho uma natureza tão ambivalente que não me reconheço.
Vou em ondas, em pequenas ondas ou gigantescos tsunamis.
Assim: Tenho um ciclo longo de uma média de 8 anos, que passo da introspecção e certo recolhimento para   as multidões, pessoas ao longe e ao lado, pessoas por toda parte.
Atualmente, quando prefiro a solidão e o solilóquio, lembro-me de que faz uns anos estava cursando uma segunda faculdade, envolvida completamente com animais e gente em sua maioria muito mais jovem que eu. E estive tão feliz!
Mas procuro aqui dentro; e procuro...  Como pude?
Então me lembro que no tempo da faculdade, ao sair de casa e atravessar a sala com pressa, balançava a cabeça para aquela que eu tinha sido, quando passava os dias a ler e a ouvir música e estava em paz.
Foi quando li James Joyce, Proust e Dante, numa viagem literalmente homérica pelos clássicos. Como foi bom.
E antes disso houve uma revolução pictórica, antes ainda invernei entre as linhas e lãs da tapeçaria,  intercaladas com anos de intenso exercício físico  ou com as artimanhas da medicina crua.
Mas também fluo em pequenas ondas, no dia a dia, quando passo do medo absurdo de avião ao prazer de degustar um chocolate artesanal em pleno vôo.
Há dias em que não quero ver nem meu cachorro e outros em que procuro uma parada barulhenta, muita confusão e gargalhadas.
Há as noites etílicas, às vezes Carmenére, outras Prosseco, ou ainda o rum que o Edmur prepara à noitinha.
E os churrascos cariocas e cheios de sotaque, temperados à cerveja e sal. 
Ia me esquecendo dos dias coca-cola e dos dias-chá!
E quando amanheço prostrada, infeliz pela humanidade e nada me faz aprumar senão o tempo? Quando nem acredito que minhas pernas  torneadas foram construídas com muita malhação?
Penso em mim como uma sombra amorfa e o espelho devolve uma criatura magra e com músculos bem definidos.
Por falar em criatura estou ouvindo compulsivamente a trilha do musical  Dr. Jekyll e Mr. Hyde e sou eu quem está ali, indo e vindo numa espiral inconstante.
Helena, Miguel e eu sempre fomos apaixonados pelos musicais e compartilhamos boas recordações.
Helena nutre esta minha paixão com cada musical que ela descobre e devora.
Ah, O Fantasma da Ópera, Next to Normal, A Bela e a Fera, Chicago...
Os meus preferidos são aqueles em que a dualidade se faz patente e intensa.
A não ser é claro que eu esteja precisando dos "sons do silêncio".
Aí, o melhor a fazer é sossegar e esperar para ver em que direção aponta esta biruta!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Viagens

Vai amigo, fazer amigos.
Mas não se afaste muito da minha memória, que dôo de saudade, quero lembranças e carinho.
Vai, que fiquei o dia todo esperando, que sua viagem agendada tivesse início, que suas malas estivessem prontas e seu transporte batesse à porta.
Ainda é cedo para ir, mas reconheço sua urgência e capitulo.
Como é penoso despedir e enfrentar a volta para casa.
Sei que é natural este ir e vir, quantas vezes viajei, incontáveis, por motivos tão diversos e para lugares tão estrangeiros.
E sempre que volto frequento o limbo das estações de transição.
Mas quando é hora de sumir uns tempos, criar asas e seguir, sinto a ebulição das águas termais interiores.
Você, pequenino, talvez nem soubesse dessa sua viagem tão emergencial e definitiva.
Como não pôde ser um saltimbanco, apenas acompanhou agradecido quem lhe quis tanto bem; e se reclamou às vezes compreendo que era a força de sua natureza selvagem.
Você não será esquecido. A terra, tão materna, recolherá seu filho, como a todos os outros.
Frutos da terra que somos, ambos retornaremos renovados e em algum momento cruzaremos de novo nosso olhar. 
 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Temperos

Queria  um pouco de açúcar para temperar este dia tristonho e lerdo.
Quem sabe uma chuva doce transformasse a rua vazia em uma multidão, ainda que de formigas e suas sombras.
Talvez eu pudesse enfim beber da água da chuva sem mistérios ou receios.
(As palavras fluem mas eu não.)
Estou triste mesmo e nem um bolo de chocolate resolverá.
Este dia salgado, cheirando a bife, começou e vai acabar assim.
Temperado demais, prolongado demais, preguiçoso.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Faz de contas

Ontem, por que você demorou, fiz umas contas:
Somei os agrados, descontei desagrados, multipliquei os carinhos e reparti as queixas em suaves prestações mensais de um dígito.
Nesta minha aritmética, visualizei o poder dos pares, a ganância dos primos e a suave relutância dos ímpares.
Fiz contas ao cair da noite, que passou por mim dolorida e saudosa de você.
Porque nos fins de tarde, sofro por esperar. Quero sua companhia, suas notícias, as custosas discussões por seu espaço; e eu aqui fazendo as contas, descobri que temos um saldo positivo e não importa mais  o vermelho, que é mais psicológico que as outras contas. O vermelho é de sangrar, é de diminuir, o vermelho é perda.
Mas nós já passamos desta fase.
Estamos começando a receber os juros e as juras do nosso investimento.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Frigidaire

Tenho uma tendência a me desfazer sem traumas de objetos que perderam a função. Entretanto alguns ficaram grudados, um imprint, uma tatuagem nos sentidos. Marcaram época, são de outra década e não quero me desfazer deles: Uma geladeira side by side Frigidaire, uma das primeiras que chegaram em São Paulo depois que as importações foram liberadas, lembram? Era um mimo, enorme para minha pequena cozinha, que nem tinha um ponto de água para que o dispenser funcionasse. Mas a previsão era de que nossa casa própria ficasse pronta em um ano e lá teríamos espaço e ponto de água para aquela beldade.  Com a reviravolta da nossa vida, viemos para o Rio e a geladeira nos acompanhou, mas o nicho para a geladeira na casa que alugamos era pequeno e ela ficou lá na área de serviço, guardando os congelados. Depois de dez anos mudamos definitivamente e um dos detalhes que mais me empolgou quando vim conhecer a casa era o fato de a proprietária ter uma geladeira side by side exatamente igual a minha, com tudo funcionando.
Quando nos instalamos a geladeira passou a funcionar a todo vapor, mas lá se iam uns 17 anos... As borrachas das caixetas foram trocadas três vezes, sendo que em uma delas a Renata fez o favor de comprá-las para mim e trazê-las em sua bagagem, em geral já bastante generosa. Foi ótimo porque o encaixe era perfeito!
Atualmente ela está um pouco senil e ultrapassada mesmo... Não é frost free, não é ecológica. O motor do dispenser de água parou de funcionar. Não há um único técnico em todo o Rio de Janeiro que possa dar jeito nisso! Ninguém quer por a mão na madame...
Ainda vou pelejar mais um pouco. Afinal, assim como o Felipe - o gato - e a Explorer , essa frigidaire faz parte da história de nossas vidas.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O frango

A mulher pegou o frango, juntou com cuidado as asas sobre o pé esquerdo, expôs o pescocinho pelado, fez um corte profundo e deixou que o sangue escorresse dentro de um prato branco, branco, que já tinha um tanto de vinagre.
Deixou ali, pousada sobre o prato, a criatura exangue e foi atender ao telefone.
Ao voltar, o frango estava de pé, com a cabeça pendendo para um lado e ela, barrigrávida, pôs as mãos na cabeça em um "aimeuDeus" desanimado. Sentou-se tonta também e esperou que a natureza efêmera das coisas terminasse o trabalho. O frango por fim desabou sobre o prato de sangue espirando o vermelho; e um olhar vítreo ainda olhava para ela.  Na bacia de água fervente, escaldou o pobre e começou a depená-lo com zelo e competência. Um cheiro acre se espalhou pela cozinha. Ela sapecava a pele na chama aberta do fogão. Deixou o frango sobre a pia, jogou fora as penas direto no lixo lá da rua, voltou com uma faca afiada, extraiu as vísceras, lavou muito bem a carcaça, destrinchou, refogou e cozinhou até que o ambiente voltasse a ter um cheiro bom e convidativo. Por fim colocou o sangue no molho do refogado e esperou que ficasse consistente.
Na hora do almoço, a família em festa, não pode comer.
E foi a última vez que preparou um frango ao molho pardo.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Paisagens

Sou mineira também mas não preciso de resgate.
Nasci em Minas Gerais, onde boa parte do horizonte é finito e próximo.
Da última vez que estive lá fotografei a incrível mudança de relevo durante a viagem de 5 horas. Ao sair do Rio - onde o mar se prolonga e se acaba no céu - depois da primeira hora, começamos a subir e subir, os tímpanos estonteados e entramos nas nuvens. Faz um frio estranho. As montanhas vão se entrelaçando e fogem umas dentro das outras, inibidas, quase envergonhadas de sua beleza plena e cobrem-se com a transparência diáfana da neblina. Em alguns pontos, vemos um vale profundo e às vezes um fio de água que esboça um desenho distraído, como quem fala ao telefone. Na medida em que descemos a serra do outro lado, depois de Petrópolis, o relevo se torna menos ambicioso, mas mantém para sempre e progressivamente, seu destino ondulado. Uma estrada cheia de curvas e avisos de perigo, deixa apreensivo qualquer um que não esteja habituado. Mas a gente se distrai quando aparecem os trens, desde aqueles com incontáveis vagões carregados de minérios, enormes,  que serpenteam, aparecem e desaparecem para logo ressurgirem, na outra curva; até as locomotivas  meio abandonadas numa estação imaginária onde aguardam sua vez.
As cidades pelo caminho também são onduladas - algumas me lembram as favelas cariocas em maiores proporções. As casas são construídas nos morros e vê-se a diversificação de cores e formas. Olhamos para as casas e elas, como os abismos, nos olham de volta.
Quando mais próximo do destino, mais o relevo se encrespa, mas tudo vai acontecendo aos poucos como numa fábula onde tudo começa no era uma vez da Serra dos Órgãos até o final feliz de um Belo Horizonte.




quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A história dos mineiros

Do pó brotaram os segredos, que na natureza se tornaram homens.
Depois veio a vida que os carregou  de roldão.
O deserto, o gelo, o cobre e o ouro... todos conspiravam.
O trabalho, a família, sucessos... os jogos de azar se sucederam.
Vencidos, os filhos pródigos voltaram à terra mãe, em busca de alimento.
Rasparam suas entranhas, machucaram seus alicerces.
A terra frouxa, exaurida, desabou.
Ali ficaram seus meninos e a terra achava que os protegia. Porque se voltaram, de dentro não deveriam mais sair, sempre foi assim.
Mas a terra, esta terra, suave mãe que tudo releva, deixou-se abrir, dilacerar.
Por um fio de voz e depois pelo canal, deram-se os partos.
Alguns homens surgiram e brilharam exultantes, movidos pela fé que transforma.
Outros, extraídos a fórceps, depois do longo trabalho e densa agonia, reanimaram-se.
E a terra, que tudo perdoa e apaga, perdoou-os.


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Mergulho

Hoje as ondas, as ondas, as ondas bateram com força na areia, na areia, na areia.
Um milk shaque de peixe se formou na praia e ninguém se aproximava.
Hoje não havia quem vendesse um picolé e as sombras não se fizeram; um dia sem contrastes a não ser pelo mar, pelo mar, pelo mar.
Um vento escuro e barulhento fustigou palmeiras e passarinhos.
Tontos, os pássaros. Estonteadas as palmeiras.
Hoje foi o dia em que vi a vida prender a respiração e num átimo se atirar ao mar.

domingo, 10 de outubro de 2010

Refém

Hoje amanheci antes do dia. Uma pressa de vida, uma urgência.
Conferi as portas da geladeira, verifiquei com cuidado se todas as lâmpadas estavam apagadas. Depois dei uma volta no jardim, retirei folhas mortas, flores murchas...
Ainda sinto o coração agitado, inquietudes...
Ontem acabei de ler o livro de Ingrid Betancourt e sua saga como refém das FARC. Acho que com tanta sede e tanta fé ela é a sobrevivente possível, das que ficam para contar.
Eu, refém de mim mesma, as vezes me maltrato e perco a fé.
Presa às correntes que me imponho, peço autorização para gritar quando o caos se instala.
Meu grito é rouco, sinal de muitos dias sem falar, onde estão meus companheiros?
Calculo que, se caminhasse pelas matas e encostas e margens de rios, ao sentir o cheiro pungente do verde decomposto, talvez me libertasse desta vocação para mártir.
Porque reconheço que vivo amparada pelas redes invisíveis dos que me querem bem, acredito que jamais me deixarão e assim mato minha fome de amor, esta carência em saco sem fundo.
Escondo meus tesouros nas dobras das roupas e finjo que não os tenho. Desta forma tornam-se mais valiosos e ao reencontrá-los fico repleta de júbilo.
Meu pobre espírito, sôfrego e náufrago cala-se diante da grandeza e coragem das Ingrids que acompanho.
E eu, com minha vida tão boa, volto para o calor e a penumbra do quarto de dormir.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Enduro

"- Mamãe, mamãe, olha o cavalinho, mamãe!"
Desde muito nova, sua paixão sempre foram os cavalos. Gostava de vê-los passar, ainda que fosse puxando carroças nas ruas de paralelepípedos ou vistos de longe, soltos no pasto.
Olhinhos brilhantes, rosto afogueado, um carrossel dentro do peito, lá ia ela montar os cavalitos de madeira do parque ou os pangarés mansinhos dos hotéis-fazenda.
Ninguém da família tivera ainda este interesse por equinos;  ela perguntava tudo, desenhava e coloria e espetava os limões com palitos em sua fazendinha FAZDECONTA.
Um dia, empolgada, foi aprender a montar de verdade. Ainda adolescente, as aulas de equitação eram seu foco. Aprendia, aprendia, ela jamais teve medo.
Conheceu muitas pessoas apaixonadas assim e era plena quando teve seu próprio cavalo e treinava para competir.
Mas o resto da vida pediu urgência e exclusividade; vendeu e deixou de lado o prazer de cavalgar e ser parte do conjunto.
Foi nesta época que a conheci e a vi chorar de saudade e desejo de montar. 
Aprendi a andar a cavalo com uns 11 anos mas sempre fui medrosa e o bicho nunca fazia o que eu queria, então o deixava ir, seguir os companheiros na picada. Jamais consegui um bom galope, eles, displicentes  e sem rédeas firmes, somente trotavam sacudido.
Quando aprendi a andar de motocicleta o professor dizia: -"Moto não é cavalo, não tem vida própria, ela só responde ao seu toque. Confesso que às vezes, a moto encabritava sobre a calçada e eu juro que era viva!
Faz uns anos convidei minha amiga para pedalar na praia. -" Ih, não sei andar de bicicleta." 
Ela passou direto do cavalinho de cabo de vassoura - quem não teve um?- para os 500 kg de alazão.
Recentemente, deu a volta por cima, saltou mais alguns obstáculos. Recomeçou a treinar, se embrenhou pelas trilhas dos cavalos e comprou todinha para si uma potranca linda. Que belo conjunto!
Desta vez foi de alegria e emoção que a vi chorar.
E eu que acredito na determinação e auto-confiança dessa moça, também chorei um pouquinho.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Movimento Browniano

Pela manhã escancaro todas as  janelas.
Sem filtros, miasmas noturnos entram e se escondem nas frestas escuras dos quartos e das salas.
Momentos aprisionados se expandem para o jardim, num rodopio.
Navios atracam nas camas, outros apitam felizes em partir para o dia.
O vento, o vento. Não há calma, nem silêncio. Sons fugidios agarram-se aos batentes.
Sou eu quem não tem filtros,  nem mesmo uma tela mosquiteira separa  o dentro do fora. Preciso desse ir e vir browniano, para aquecer e rearranjar os sentidos.
Sei que assim exposta corro riscos, eu sei. Não tenho o corpo fechado como ele...
Mas em plena criação quem pode conter esses fluxos?

domingo, 3 de outubro de 2010

Gatos ainda

Nesta madrugada, tive um sonho.
Acordei cedo e ainda havia os gatos por toda parte. Esgueiravam-se pelas sombras, atrás dos sofás, sobre as mesas. Procurei cada um deles e me lembrava do preto e branco que quando me viu desapareceu. Do outro, este branco e preto que miou aguda e longamente, mas quando fui encontrá-lo também esvaneceu. Um malhado atrás da porta, um engraçado frajolinha, e outros, muitos outros.
Sempre que os via, chamava a atenção da Helena - olha, Helena, que lindo aquele, você vê?
Não, ela não via, apenas piscava lentamente as pálpebras.
Então apareceu o gato marron dourado, no tapete da sala. Desta vez ele me deixou tocá-lo, passei a mão em seu dorso e sentia seu ronronar. Tornei a perguntar a ela: E este Helena, você vê? Ela via. E sentia. Também quis afagar o bichano. E desta vez  fui  eu que esvaneci, morta de pesar de ter sumido de meu próprio sonho tão delicioso e mágico.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Diamante

Quando as vacas estavam magérrimas os meninos perambulavam por ali, sem querer pedir. Mas era tanta a fome que antes de voltarem para sua cidade, um e outro resolveram o problema. Quando estavam a meio caminho o mais velho mostrou um chocolate que havia surrupiado do armazém para dividir com o irmão. O outro caiu na risada e tirou do bolso mais um diamante negro! Que festança!
Depois dormiram saciados até a rodoviária