quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O namorado da minha irmã

O Mário chegava  em Uberaba depois da longa viagem desde o Rio de Janeiro onde fazia residência médica, para passar uns dias com a namorada.
Depois do jantar contava histórias de medicina que ele tinha vivido nas últimas semanas.
Trabalhava em um grande hospital com muito pronto-socorro,  então era uma pauleira só.
Ele desde sempre foi muito engraçado, tem umas tiradas de tirar o chapéu.
Mas enquanto ele contava as histórias,  eu com uns 10 anos ia ficando cada vez mais impressionada.
Fazia de conta que era tudo muito normal, mas teve um dia que ele me pegou no pulo!
- Ei, menina você fica aí ouvindo com esses olhões arregalados, depois não vai dormir!
Não era para ele ter percebido. Mas lembro direitinho dessa cena.
Ele deu um gato para a  Nanana enquanto ainda eram namorados. Era um bichano arredio e eu naquela época não sabia que gostava tanto de animais.
Acho que preferia mantê-los afastados para não sofrer com as situações estressantes e as perdas eventuais.
Atualmente compartilho com ele esse amor visceral pelos gatos.
E com certeza também compartilhamos o amor pelas filhas dele.
Todas tão lindas e apaixonadas por animais!

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Apocalipse?

Tenho um galo do tempo português, presente da mamãe de uma de suas viagens.
Aqui no Rio, por causa da umidade do ar ser em geral muito alta, o galo oscila entre o rosa e o violeta. Pesquisei e parece que é o cloreto de cobalto embebido no tecido que envolve o galináceo que promove a mudança de cor.
Nas últimas semanas o tempo está seco - eu diria sequíssimo - e um calor de Janeiro.
O galo está tão azul que até dói olhar.
Todo mundo tem um indicativo pessoal para as possíveis mudanças de tempo.
Inchaço no dedão do pé, cabelo encrespado, cicatrizes que coçam, cicio das cigarras...
E hoje em dia, o serviço meteorológico costuma ser bastante eficaz.
Quando há algum disparate é sempre bom ter alguém para levar a culpa:
-Mas a previsão era de sol!!!
E é aquele pampeiro para fugir da chuva inesperada.
Mas nada se compara à interpretação das cores do galo:
- Nossa, ele está tão azul, deve estar chamando a chuva!
Tomara! Mais um dia com esse calor e  vou começar a acreditar que é o apocalipse!

domingo, 28 de agosto de 2011

Aviamentos

Onde me espetam, fico!
É aí que o conto Um Apólogo  do Machado de Assis  dá seu recado.
Quando era adolescente e li este texto, foi como se descobrisse o meu lugar no mundo.
Já li centenas de vezes e sempre me encanta.
Por que em um mundo de linhas e agulhas, ser uma ou outra é questão de temperamento.
E em uma caixinha de costura há lugar também para dedais, carretéis, fitinhas, massanamarias...
Não, não, nada disso. Caibo muito bem no papel de alfinete.
Somente com a ressalva de que quem me espeta onde quero ficar, sou eu mesma!

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

"Peladinha"

Durante o periodo da Residencia Médica, em meados dos anos 80, resolvi aprender a desenhar e pintar. Precisava expressar meus sentimentos e conflitos de uma forma mais pungente que cantarolar no banheiro.
Tive vários professores e de cada um guardo lembranças muito boas e descobertas incríveis.
Pintei muito, muito mesmo.
A princípio fui aprender a desenhar. Depois usei todo tipo de material e todas as técnicas possíveis para experimentações, estudei perspectiva, cores, composições; luz e sombra e por aí andei em um mundo mágico demais para ser descrito.
Muitos anos depois, fazendo uma limpeza nas tranqueiras que vamos juntando, resolvi jogar fora umas 4 ou 5 telas desses tempos de aprendizado. Quando fui colocar o lixo lá embaixo, levei as telas que deixei encostadas no muro para que os lixeiros carregassem.
Entre elas estava a tela de uma moça nua, de uma aula com modelo vivo.
Uma hora depois fui olhar pela janela - provavelmente para dar uma baforada - e vi no meio da rua um frentista do posto da esquina carregando a minha "peladinha" debaixo do braço. Achei uma delícia.
A partir daí de vez em quando olhava lá fora para ver os progressos da minha "doação".
Um último quadro acabou ficando à deriva. O patologista.
Era a pintura de um microscópio e um patologista se olhando meio pela tangente, numa perspectiva no mínimo ousada, para não dizer errônea.
Alguém passou, resolveu carregar e desistiu no meio do caminho, então o pobre quadro ficou a noite toda abandonado no meio da rua. Pensei em ir resgatá-lo e transformá-lo em pó; e não tive alento.
Mas cada vez que um carro passava pela rua de paralelepípedos e massacrava ainda mais meu pobre patologista sentia uma indescritível dor no coração.
Também pudera! Não se estraçalha assim com tanta violência nem mesmo o mais obtuso dos animais.
Porque fazê-lo com uma parte da minha vida?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Mãos à obra

Imagine que o mundo é um painel feito de pano, feltro e fantasia, e os personagens são de origens, espécies e idades diversas.
Num mesmo balaio os animais e os filhotes e os donos e as crianças, aguardam sua vez de aparecer no palco e o pano de fundo é uma cidade grande com seus contornos ásperos de concreto e aço.
A cada dia novas histórias são inventadas porque tudo depende da mão que se enfia no baú e pega aleatoriamente os personagens. Então um filhote de cão, uma vaca mocha, dois irmãos de 5 anos e uma velhinha doceira tem que combinar a qualquer custo.
É assim que considero o mundo.
Pode-se desejar ou não participar da história.
Mas não adianta ter medo. Na teoria da probabilidade qualquer um dentro do baú de personagens pode vir à tona.
Então vamos lá! Mãos à obra!

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Um jeito de sentir

Existe uma palavra linda: tristíssimo.
Apesar de ser hiperbólica, evoca sentimentos muito antigos, de quando a tristeza  era companhia constante  da poesia e muitas vezes da prosa.
É um sentimento delicado e puro, essência do  cair em si;  e do entregar-se.
A tristeza é boa quando há muito tráfego, quando muitos assuntos e ideias se condensam sobre o pensamento.
Deixe estar, fique um pouco triste. Ajuda a clarear,  a passar pelo luto da perda, qualquer que seja ela. 
E se ainda não for suficiente, se existir aquela dor  absoluta que somente alguns conhecem e se você conhece a dimensão dessa dor, deixe-se levar.
Fique tristíssimo.
Depois conversaremos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Uns anjos

Uns anjos.
Há pessoas assim, a gente acha que são pessoas, mas com certeza  são anjos.
Desses que fazem tanto bem que em volta deles  se vê  fartura de amor e amizade, eles têm o dom de ser companheiros leais.
Há uma luz, um aconchego quentinho, até uma lareira pode aparecer e estalar madeira, como é bom, como é lindo.
Mas como sofrem esses anjos...
Dentro deles existe um deus embutido, que ao condenar, acaricia e ao surpreender, dá risadas de puro deleite.
Mas estão muito ligados às pessoas que guardam, então ficam às vezes, muito sentidos se não podem alterar o manifesto divino.
Não adianta conversar com Deus, não podem pedir mais do que tem, como andaria a carruagem se Deus contentasse a todos os anjos da guarda?
O livre arbítrio... os anjos não tem...
Somente um grande amor pela humanidade, somente emocionar-se e lá no fundo desejar ser poderoso para descumprir os desmandos de Deus.

sábado, 20 de agosto de 2011

Pilhas de livros

Eu desisto!
Mesmo que eu passe o resto de minha vida lendo em todo o meu tempo livre - que é bastante tempo- não vou conseguir ler nem um quarto do que pretendia. Mesmo porque, além dos clássicos - tenho tantos ainda em minha lista de desejos- sempre há livros novos, e autores novos que eu adoro descobrir.
Sou dessas leitoras que compram vários livros de uma vez  e quase enlouqueço para escolher qual ler primeiro. Acabo começando dois e em alguns dias estou lendo vários em paralelo. Há uma pilha de quatro livros em minha mesinha ao lado, todos com marcadores pelo meio das histórias. Isso porque estou deixando quieta a enorme lista de autores estrangeiros não traduzidos para o português ou Inglês.
Há os livros que o Miguel lê - ele prefere aqueles chamados não-ficção: históricos, políticos, de geologia, de física, além de muitas biografias de pessoas interessantíssimas que também escreveram livros. E eu vejo aquela fartura de títulos e queria devorá-los, incuti-los todos definitivamente em minha memória tão virtual e vã.
E os autores da Helena que nem conheço, passo os olhos pela pilha de livros dela e são todos mistérios. Espicho um rabo de olho para eles, como me atraem!
E ainda aqueles que já li, muitos mais de uma vez mas, que ainda me encantam, que saudades.
É um moto-contínuo e sei que preciso controlar minha ansiedade.
E a única forma de me engambelar e relaxar um pouco é pensar que sou privilegiada.
Muita gente nunca leu a não ser cartilhas de primeiro grau, muitos nem escrevem seu nome e jamais vão ler.  E muita gente nem se interessa por livros! Parece absurdo mas conheço algumas...
Mas se tiver a chance de viver de novo quero voltar assim: uma leitora obstinada!

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Filas intermináveis...

Sou do tempo em que nem fila única havia, imagine internet.
Em qualquer banco, filas intermináveis e a do lado sempre andava mais rápido. Muito foi escrito sobre o assunto. Papai era bancário e sempre falava em estabelecer uma fila única. Para ele seria muito melhor e mais funcional. Realmente quando a "moda" pegou, ficou muito mais fácil e justo. Assim, acabou aquele estresse de observar que a fila do vizinho era mais rápida.
A Fernanda também foi bancária e lembro-me do cuidado dela com pessoas idosas ou deficientes. Tirava da fila e atendia, numa solidariedade e respeito que só foi implantado muitos anos depois.
Atualmente a Internet diminuiu as filas nos bancos. Em compensação nas operadoras de celular o caos está instalado.  Reclamei da demora e me disseram: O sistema caiu, temos que fazer tudo manual...
- Mas que porcaria de sistema esse! Que tal atualizá-lo?
- É que a demanda é muito grande...
- Não diga! Bom para vocês, não?
Enquanto aguardava, por mais de uma hora pensava na evolução dos tempos... A fila de atendimento prioritário muitas vezes é maior que a fila única. Muitos recém idosos ficam divididos, em qual fila será mais rápido? Bom, eu sei a resposta: a do vizinho...
Também pensei no crescimento populacional e na mudança do gráfico de crescimento. Nas aulas de estudos sociais éramos uma pirâmide. Hoje somos uma espécie de ânfora: Um gráfico barrigudo.
Amanhã seremos uma pirâmide invertida. O que será da fila dos idosos? A maioria será idosa...
A fila única será também a fila de idosos... Eu, hein?
Deixa para lá. Mesmo porque acabaram de gritar o número da minha senha de atendimento.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Quimioterapia

Maria, não se deixe abater pelo que os astros dizem. Eles têm caligrafia infantil e parece-me que  não sabem que a superação é seu maior destino.
Quando olhamos muito de perto para nossa pele, encontramos o desenho das veias  e a impressão do sol ao longo dos anos, com uma nitidez que não condiz com a realidade.
Porque a realidade é a musa interior que foi embalada desde o berço e se fortaleceu com elementos espirituais e de Ioga.
As drogas, essas drogas de que você depende  agora, até mesmo por força dos rabiscos dos astros; e que são para conter suas células tão impulsivas, vão ser reduzidas e depois eliminadas da sua rotina.
Voltará a sentir-se bem para trabalhar,  visitar os amigos - você me deve uma visita aqui no Rio - viajar pelo mundo e acima de tudo ser a boa pessoa que é, iluminada e consciente.
Não desanime, não descanse enquanto não estiver livre.
A liberdade, um dos maiores prazeres em existir tem os braços abertos para você.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

No Incor

Semana passada estive em São Paulo para acompanhar a mamãe em  um procedimento relativamente simples  de se realizar na hemodinâmica -  uma ablação de nó AV.
Tive a oportunidade de rever pessoas queridíssimas, amigos de verdade, mas também esbarrei em gente que detesto. Não pude evitar...
Andei pelos corredores do Incor intimidada pelo ambiente asséptico, frio, com uma pletora de aventais brancos e  uniformes de várias outras cores, elementos que há muito tempo saíram da minha rotina, hoje tão mais amena.
Sei que pelo menos 60% das pessoas que agora circulam por lá não são da minha época, mas existe um ar familiar de prepotência velada e eficiência manifesta; cada um cumpre seu papel na trama acadêmico- hospitalar.
Bem, depois de muitas horas de espera agoniante, chegamos à hemodinâmica - a lentidão da carruagem logística continua a mesma. E os elevadores são de enlouquecer.
Mamãe muito cooperativa, mas exausta e faminta, foi transferida para a mesa de exames. Várias pessoas circulavam por ali cada um cuidando de sua parte no esquema. Alguém cutucava seu braço, outro levantava a perna, outro ainda perscrutava as orelhas, enquanto auscultavam seus pulmões.  Eu olhava a certa distância para não entravar a dinâmica geral.
Chegou o momento de instalar  os monitores cardíacos, colocar os  campos cirúrgicos e introduzir os cateteres para chegarem ao coração em um procedimento que, no caso dela, seria de no máximo cinco minutos. Então um dos médicos, já com o avental de chumbo e devidamente paramentado,  muito educado e solícito explicou a ela: Dona Elvira, agora nós vamos armar o circo!
Ao que ela prontamente respondeu:
E eu sou o palhaço!?

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Um vício

Vamos supor que avisem de última hora que a humanidade está condenada e que somente pessoas com menos de cinquenta anos e plena força de trabalho terão chance de serem escolhidas para cidades subterrâneas ou espaçonaves-cidades. Sim, porque é isso que assistimos em todos os filmes-catástrofes da atualidade. Estamos condenados,  mas para quando será o fim e de que forma? Talvez a gente vá morrendo aos poucos, diminuindo progressivamente como espécie até deixar o topo da cadeia alimentar. Mas duvido. Acho que nosso destino está selado e nosso asteroide exterminador já está à caminho. Então fico aqui pensando, pensando...  E resolvo que se em último caso meus dias estiverem contados,  optarei pelo sossego e calma de quem sabe o que quer: Vou comprar um pacote de cigarros e vou  fumá-lo inteiro! Saboreando cada baforada. Como costuma dizer o Miguel, também  ex-fumante, cigarro não é ruim. Cigarro é muito gostoso. Por isso é um vício.  Por isso é para sempre difícil conviver com a falta.  Mas em caso de emergência, quebro o vidro sem dó.

domingo, 14 de agosto de 2011

Pais e filhos

Em busca de um pouco de pai, tratei de vestir-me de branco e fui com toda a faceirice beijá-lo como se beija o mais querido de todos os homens, mas ele tinha partido.
Ao encontrá-lo sozinho e quase triste por isso, animei seus instintos cobrando a minha parte do zelo, o conselho que era para mim e não para qualquer outro irmão.
Depois de tê-lo visto tantas vezes sóbrio, reconheço que esteve embriagado do amor por seus pares, o bebado ávido da luz que tantos procuraram quando viram Deus.
Caminha por aí meu prestimoso amigo, meu velho, conhecido pelas histórias de pescador que eu ouvia encantada pela centésima vez.
Caminha vezes sem conta pelo céu azul ou negro e nos encontre a todos na expectativa de abraçá-lo mais uma vez, ainda que seja mais tarde em nossas vidas, quando já formos nós os velhos e descarnados seres que partirão um dia para longe dos seus filhos.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Os cactos e o amor

O amor não é banal. É preciso cultivá-lo como a uma plantinha tenra.
Certa vez afoguei meus cactos por achá-los sedentos, eles que são mesmo sequinhos e precisam ser desprezados às vezes. Tem muita gente assim também. Nada de encharcar de beijos e agrados, só cordialidade, uma certa distância e suspense, ingredientes fundamentais em qualquer romance.
Porque para os cactos, que sobrevivem por sua natureza árida, há que deixá-los livres e à vontade em seu comportamento seco e espinhoso.
Outros amores não, precisam de cuidados constantes, atenção aos sinais,  suspiros e as outras inquietações.
Aqui cada detalhe é percebido com um avanço ou retrocesso e tudo pode mudar rapidamente se lhe quebram o vaso. Cacos no chão, a terra espalhada e a pobre plantinha magoada em suas nervuras.
De que forma saber que casais se formarão? Por serem semelhantes ou complementares? Ouvi dizer que aqueles com mais semelhanças tem maior chance de serem felizes. Tenho dúvidas. Muitas vezes as semelhanças melancólicas  carregam de roldão toda a felicidade possível e o casal cai vertiginosamente despenhadeiro abaixo por falta de uma dose de fúria de um ou de outro.
Porém, se as semelhanças são para o criativo e o saudável, tudo pode dar certo. Cá entre nós se cada um deste par hipotético é feliz interiormente, juntar felicidades é soma na certa.
As vezes é possível encontrar amores de longa data  que são como peças de um quebra-cabeças. Encaixam-se perfeitamente desde que no lugar correto. Não adianta forçar um ser que acorda com as galinhas a dormir até mais tarde. E nem tornar alguém notívago, um atleta matinal.
Mas há tantas peças... Mais de mil em meu quebra cabeças pessoal. E as vezes até quero forçar um encaixe mas a forma não traduz a imagem.
Todos os meus sentidos estão moldados para compreender as pequenas mudanças no dia a dia. Alguns galhinhos secos, a terra muito chorosa, adubo demais...
Se deixasse minha plantinha ao seu bel prazer, ela morreria.
A rotina é traiçoeira e seja por excesso ou falta, o amor não pode ser cozido em banho-maria.
Choques térmicos! Esta é a melhor forma de estimular o amor!
Portanto, mãos à obra. Sem preguiça. Sem procrastinação.
Porque viver um grande amor é um privilégio.
E é um desafio para poucos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Protetores

Estou toda ardendo, passei horas quentes sob o sol e nem lembrei de me proteger. Pensei que era super:
- que nada, este sol de inverno, essa brisa...
 Agora à noite, a  pele do meu rosto reclama trincada, vermelha, desidratada.
Depois de tantos anos pelejando com uma pele sensível - passei por enormes e dolorosas bolhas de queimaduras no rosto durante a minha infância, quando o único protetor era o velho hipogloss, e eu queria a água e o sol, sempre. A luz e o calor me seduzem.
Hoje foi só uma caminhada, dessas preguiçosas, regada a conversa boa e íntima. Íamos em família, Miguel, Helena e eu. Visitamos nossas amigas, as corujas-buraqueiras, fotografamos os micos e assustamos uns horríveis urubus.
De volta para a casa, Helena reparou em uma fotografia emoldurada recentemente, de uma menina em uma bicicleta rosa... É a foto que uma amiga tirou em uma excursão fotográfica há alguns meses e me permitiu revelar.
Helena chamou: Mãe... sou eu? Não me lembro desse momento...
Contei a ela toda a história. Entre tantas imagens lindas que a Irina fotografou, aquela me enfeitiçou.
E agora sei porque não me saía da cabeça. Até a Helena se encontrou na foto!
Passo a mão no rosto e sinto minha pele mais suave e fresca.
Compreendo que tudo que sinto fisicamente é só saudade da minha querida!
Vá em paz, minha filhinha e que sua semana seja produtiva e cheia de sol!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Marceneiro

Quando preciso de um marceneiro, não tenho dúvidas, chamo o João.
Ele deve ter uns 35 anos, é baixinho e magro, veste-se muito bem para o trabalho que faz e é extremamente formal.  Chega sempre na hora combinada, vem de carro próprio e seus dois ajudantes são simpáticos, educados e eficientes. Quando terminam o trabalho deixam tudo limpo com a serragem e a poeira toda da madeira dentro de um saquinho de lixo.
Ele se veste com camisas claras de mangas compridas e dobradas à altura dos cotovelos e um jeans básico mas sempre limpo e passado. Um primor. Por ser assim tão especial, apesar de eu já ter passado da meia idade, não consigo resolver se o chamo de senhor ou você. As vezes chamo de senhor e ele aceita bem. As vezes quero brincar, contar um caso e chamo você, sem querer. Ele fica impassível qualquer que seja o trato que lhe dou. A propósito, ele sempre me trata por senhora...
Hoje cedo estava aqui trabalhando em minha sala e seus funcionários estavam no andar de cima resolvendo uma porta emperrada nos trilhos.
Eu lia as notícias na internet e uma vozinha chamou minha atenção. De onde vinha? Da cozinha? Não. Nem lá de cima, nem do computador ou dos rádios...
Imaginei que ele se comunicava através de um celular e fui me certificar.
Que nada, ele fala sozinho mesmo!

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Fantoches

-Mas você perdeu muito!
-Desculpe, não pude ir...
-Então vem agora!!!
Não fui. Tinha ido uma semana antes e é uma longa viagem.
Depois soube que o teatrinho tinha sido o máximo, as crianças, os adultos e até o lobo mau, um sobrinho - uma criança muito adulta- adoraram a festa!
O lobo, coitado, acabou em um zoológico e foi forçado a ser vegetariano...
Pobre animal! Depois de se alimentar de suculentas delícias em toda a sua vida passada, incluindo vovozinhas distraídas, menininhas de vermelho e deliciosos porquinhos, foi condenado ao ostracismo, à solidão do zoológico e às verduras.
Talvez para ele, sempre tão extrovertido e engraçado, a maior tristeza seja não mais participar das festas e dos teatros.  Não fosse por seu desejo de carne, seria um lobo bom...
E se não fosse pela impossibilidade física da proeza, traria para o meu quintal todos os lobos dos zoólogicos.
Em uma alcateia, todos os lobos são do bem.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Percussão

Os instrumentos de percussão destinam-se principalmente ao ritmo. Alguns obedecem à escala melódica  como o xilofone  mas sem uma bateria "afinada" as escolas de samba atravessariam a música muito mais vezes. Gosto particularmente dos tambores com seus sons  profundos e retumbantes. O bumbo, que é tocado com as  mãos sobre a pele esticada, é pura mágica; o som sai do coração do tocador para o instrumento e aí  se espalha.
Acho a bateria um ser vivo, quase. Parece que nos olha de lá, espera que venham até ela, mantém-se distante até que quem   possa entender suas manhas  e caprichos   e  que   tenha o dom  sagrado do ritmo sincronizado  apareça para  domá-la. Porque pedais, pratos e tambores, baquetas, tarolas e   o chimbau  exigem  tanta coordenação que só de ver e ouvir  fico triste. Eu penso - quero tocar o prato e o bumbo -  mas  minhas pernas e braços quedam  numa paralisia trêmula.
Bem, há inúmeros instrumentos de percussão disponíveis. Porque fui cismar logo com o mais complicado?  Se posso usar uma caixinha de fósforo, ou  mesmo um sofisticado ganzá de pratinelas para me integrar à música, devia ser mais modesta. Ora, baterias...
Quem sabe em uma outra encarnação.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Uns anjos

Bem longe daqui, onde as estrelas são enormes e quentes, brilha uma lua pálida.
Os anjos que moram lá acendem velas votivas ao deus que ainda criança transformava  pedras e pó em planetas e seres mágicos.
Conheço esses anjos, tem sentidos restritos, eles não falam, só escutam e sofrem se ouvem falar de maldade e traição.
Alguns são tão pequeninos que se confundem com as joaninhas e se espalham entre elas num alvoroço festivo. São eles que dão as cores aos insetos e às aves.
Já reparou nas cores dos bem-te-vi? Já ouviu o tom amarelo dourado do canto do sabiá?  E o topete vermelho dos quero-quero, por mais que misture as  tintas não consigo criar tal cor.
Por não terem voz, os tais anjos se expressam  mais intensamente com as cores e com o brilho das velas.
Mantém em segredo suas pequeninas aflições, por que existem, quem os criou?
Meus anjinhos, não se perturbem. Fui eu quem os criou. E se existem e tem voz ativa ainda que em  tintas é que ando precisando mesmo de uma fantasia.  Para tornar meu dia calmo e simples numa miríade de luzes e cores.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Cadeia alimentar

Hum.... filés de peixe congelado, salmão em postas, camarões descascados e pré-cozidos, filezinhos de frango congelados e sem tempero,  peito de perú cozido e desfiado, lombo de porco temperado, carne de sol, um cupim, um lagarto redondo, paio, uma peça de filé mignon para os bifes e carne moída.  Pronto! Completei as compras de carne deste mês para a família, arrumei tudo no freezer e na dispensa. 
E agora? Faz frio, o céu nublado-enxaqueca, uma claridade artificial...
É que estou infeliz com nossa condição na cadeia alimentar; estar no topo significa que dependemos das vacas, peixes e galináceos para obtermos a proteína de cada dia.
Acho que seria uma libertação poder ter um rúmen opcional e toda a engrenagem metabólica bovina para transformar capim em músculo.  Até mesmo aquela mastigação involuntária dos herbívoros parece-me mais nobre que matar os bichos para comer e completar nossas necessidades.
Os mais descolados e os alternativos vão falar dos benefícios da soja e das dietas pálidas e verdes que também podem promover o bom funcionamento do organismo, sem matanças.
Os mais extremistas, que não comem sequer produtos de origem animal, têm seus motivos e eu respeito.
Mas acho muito difícil resistir aos bolos e doces que no mínimo levarão ovos e leite.
Depois que parei de fumar, quando passo por um infeliz que acabou de voltar da rua onde alimentou o vício, tenho aflição de eventualmente ter cheirado assim, rançosa e fúnebre.
Compreendo a confusão de um vegan quando passa por acaso em frente a uma churrascaria.
Eu prefiro as carnes magras e brancas mas de tempos em tempos acho uma delícia uma picanha mal passada, temperada somente com sal grosso.
É claro que nesses momentos,  distraio minha consciência, tomando uma caipirinha e alguma cerveja para completar meu pacote de desvarios.
Quando acordo do sonho vermelho, com uma certa tristeza volto às carnes brancas e ao consolo dos cereais, grãos e verduras, consciente  de que essa paz é temporária e que qualquer dia vou me render novamente aos apelos dos sentidos mais viscerais.
Carne vermelha é um vício também...
Pelo menos, dos males o menor.