quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Presságio

Estava lá fora quando ouvi um estrondo. Fogos de fim de ano? Não eram... Nem helicóptero e nem trovões.  Eram tiros de verdade.
Não estavam ao alcance da minha vida nem mesmo da minha vista, mas arregalei os olhos num presságio mudo. Mataram ou morreram? Quem?
Suspirei relaxada, feliz de não ser ainda, vítima de balas que se perdem.
Não devo nada a ninguém. Nem ofereço resistência se me assaltam. Somente uma bala sem destino se alojaria em meu corpo.
Se houver tiroteio arregalo os olhos e num alvoroço me escondo de mim.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

do outro lado do espelho

espelho, diga-me se reflito, ou se sou reflexo da luz de outra.
mostre-me se lastimo a prótese, ou a torno dependente minha.
do outro lado, no cinzento do espelho não há verdades, mas desculpas.
deixe-me espelho, levar para o cinzento as nuvens que me antecipam.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Brasilidade

Uma pitada de Espanha, um punhado de Escócia. São os temperos especiais da minha brasilidade.
Por um lado explosiva, por outro fleugmática, vou seguindo assim em lufadas, quando não estou dando um jeitinho brasileiro.
Minha pele branca e estrangeira, já encardida pelo sol e seus efeitos, tem manchas de todos os tons, das sardas brancas que se espalham pelas pernas até a pinta preta e redondinha no alto da coxa, que tem ares de ponto final.
Nessas idas e vindas tenho muito por fazer e pouco já realizado.
Mas espero que como o pessegueiro que ferido em suas raízes floresce e é pródigo em frutos uma vez ainda antes de morrer, eu  possa dizer para que vim e para onde vou, antes de fechar os trabalhos de viver.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ambivalência

Desde que mudamos tenho sofrido com a escuridão da minha cozinha.
Modifiquei a abertura das janelas, coloquei telhas transparentes, mas o resultado foi mínimo.
Pensei em quebrar a janela da copa e abrir uma porta enorme, mas o engenheiro desaconselhou porque a parede é estrutural.
Então tive uma ideia simples, óbvia. Mandei cortar toda a trepadeira que cobria lindamente o muro. E só de botar abaixo aquele lindeza verdinha, mesmo em um dia nublado, já amanheceu no ambiente.
Imagino quando o muro estiver pintado de branco.
Estou triste, meio de luto pela hera linda que foi toda para o chão e ali parecia a pele retirada de um grande animal selvagem. E sinto uma estranha felicidade  por saber que agora vou tomar o café da manhã com a luminosidade que necessito para o meu dia clarear.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Desafinando

Existe uma enorme diferença entre ser surdo e não ter ouvido.
Quem é surdo não desafina, cria sons.
Quem não tem ouvido desafina até na prosa.
Há aqueles que escutam muito bem e se vão cantar, sabem que estão desafinando. Sofrem muito. Conheço uma moça que adora uma roda de samba, mas na hora de cantar só faz de conta com os lábios, para não passar vergonha. E ela sabe todas as letras!
Há os felizardos que cantam alto e desafinado, olhinhos fechados tamborilando uma caixinha de fósforo, no maior prazer.
São essas diversidades que nos tornam humanos.
Uns e outros se continuam nas vozes.
E nestes momentos quando todos compartilham não há felicidade que desafine.