quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A hora da partilha


Nem bem a Nona  exalou pela última vez seu elaborado suspiro, a Nora e a filha mais Nova se engalfinharam às portas da funerária.
- Nova – disse a Nora – A Nona me presenteou com aquela baixela de prata que fica sobre o aparador faz dois anos, tá? 
- Eu, hein, não me lembro de ela ter falado nada... 
- Juro por esses olhos que a terra há de comer!
- É relíquia da família, e só sai da casa por cima do meu cadáver!
Era tamanha a presença da morte, que ali não se falava sobre outra coisa.
Depois do enterro, olhos cobiçosos variam cada centímetro da propriedade.
- Essa porcelana inglesa, esse jogo de jantar é meu!
A Nora e a Nova, cada uma a segurar por uma alça da sopeira, por fim deixaram-na cair e se espatifar no porcelanato.
Muitas cacos depois, cada uma juntou seus trapos e foi chorar num canto, saudosas da matriarca que era um verdadeiro rei Salomão.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Bamboo!


Há  uns 30 anos, tive um professor de desenho clássico em São Paulo, de que me lembro com saudade. Seu atelier era repleto de figuras de gesso e de trabalhos feitos por ele e por seus alunos.
Era um espanhol de altura mediana, hirsuto, de olhar falconídeo. Suava ácida e profusamente e soava áspero e incisivo enquanto nos ensinava.
Dizia que deveríamos "deitar" sobre o papel, e morrer em cima dele para obter o melhor resultado possível. Era muito grafite, muita borracha e vários desenhos rasgados pela fragilidade do papel depois de tanta lida. Só então partíamos para a folha da arte final, impecável, limpíssima. Era preciso uma assepsia cirúrgica para não macular o suporte da “obra prima”. Bons tempos!
Depois disso, fui pintar grande, gestual e emocionalmente, numa técnica que aprendi com outro querido professor, quando misturava cera de abelha e tinta óleo.
Desta forma era possível trabalhar por mais tempo do que quando usava tinta acrílica - gosto de pintar no quadro todo, o tempo inteiro - e a secagem era mais rápida do que com a tinta a óleo pura - sou aflitíssima.
Descobri que era aquela a minha mídia.
Pintei muito e emoções à parte, fiz bons trabalhos.
O problema era guardar aqueles painéis enormes de 2 x 2,5 mts ou mais. Enrolava, enfiava em um canto com os outros e partia para o próximo.
Quando a bandeira verde acenou para mim: - Trate de ser mais ecológica, mocinha! Essas telas vão levar séculos para se acabarem! – comecei a usar o computador e o Photoshop e viajei até me cansar da falta da "pega" da tinta e do cheiro de mel a atrair abelhas para me fazerem companhia.
Passei muitos anos sem pintar, comecei a escrever o blog e a inventar histórias.

Perdi mamãe faz uns 15 dias e ainda estou convalescendo. Difícil pensar com clareza, imagine escrever.
Mas, ontem, ganhei do Miguel uma mesa digitalizadora moderna, Bamboo, e comecei a desenhar para me distrair. Em poucas horas estou mais leve e vejo uma sombra de tranquilidade.
Com a Bamboo posso criar grande, fazer e desfazer quantas vezes desejar e quando canso de um desenho, começo outro, assim, num clique.
Precisava muito! Poder exorcizar minha tristeza de maneira ecológica. Sem papel, sem tinta, sem pincéis e sem a complicada terebintina.
Posso criar e jogar fora! Ou posso guardar e depois jogar fora com danos ambientais mínimos.
Vieram me observar:
- Que lindo!  Mas como vai transformar em quadro?
E eu respondi: - Para quê? 
Tudo que eu preciso agora é arrancar daqui de dentro a granada que ameaça meu coração.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Se me tocam, ouriço.
Se me beijam, mordo.
Se durmo, sonho,
e se acordo, sonho.
Onde estará?
Miríades de luz vagueiam na penumbra.
Outros tantos sons percutem, reclamam.
Luto.
Não naufragar, não desistir, não afogar.
Se me abraçam, choro.
E quando choro, as palavras morrem.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Origami

Quando nossas crianças desenvolvem seus próprios passatempos, quando já não interferimos em suas escolhas e decisões, deixamos de ter filho, (no sentido restrito de cuidar, e impor, e limitar).
Passam a ser nossos mais caros  amigos; e compartilhamos confidências e conselhos.
Uma década ou duas depois dessa libertação alcançada no dia a dia por eles, não diremos mais: - Estes são meus filhos.
São eles que dirão: - Estes são meus pais.




quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A nuvem


Do ENIAC até aos notebooks atuais já se passaram sete décadas! 
Daquele ser abstrato, enorme, relacionado às viagens espaciais, para a facilidade atual, de cada pessoa da família ter seu próprio instrumento, só se passaram setenta anos.
Quando minha filha nasceu, o quarto onde ficava nosso monstrinho digital foi todo remodelado para ela e o computador foi relegado a uma pequena sala que anteriormente eu usava como atelier.
Bem, não sou boa com máquinas, mas tenho um companheiro que dá baile em muito técnico de informática. Quantas vezes o acordei de madrugada porque o computador retrucava inclemente ao meu comando:
“It’s not a logical expression!"
Muito devagar fui aprendendo e esperava o dia em que iriam finalmente criar uma caneta para se usar em uma superfície lisa e que pudesse ser transferida para o computador. O mouse nunca se prestou ao desenho.
A primeira tablet disponível no mercado, eu tive! Foi um presente e tanto!
Mas a caneta era presa à prancheta, pouco sensível e o desenho perdia o movimento e a sensibilidade.
Voltei ao papel.
Também antecipei o lançamento do porta-retratos digital; passava nas lojas e perguntava:
- Vocês não teriam uma moldura com tela onde se pudessem colocar as fotos de um arquivo eletrônico?
- Isso não existe!
Saía da loja frustrada e pensava:
- Mas vai existir!!
Hoje é tão comum que já devem estar inventando um porta-retratos digital em 3D!
No fim do ano passado, estive às voltas com um texto de mais de 60000 palavras. Salvei algumas versões e pasmem! Desgraçadamente, não salvei em uma pen drive.
O computador, de uma hora para outra, desistiu de viver, em um piado tristonho.
O técnico virá hoje trocar alguns componentes. Torço para recuperar meu arquivo.
Conversando sobre isso com minha irmã Beré, ela aconselhou:
- Tita, use a nuvem! Você pode acessar de qualquer lugar em qualquer computador!
Confesso que não estou muito a vontade com a tal nuvem.
E se ela de repente chover todas as minhas palavras?

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Ansiedade


Estremeço sempre que penso em todas as boates que frequentei, nos bares, jantares, festas infantis. 
Viajar de avião: Quem nos leva é um grande desconhecido, qualificado, mas uma pessoa. O que nos leva é um instrumento, revisado por outro desconhecido, também humano. Olho para trás e me surpreendo de ter escapado tantas vezes de possíveis catástrofes, ou acidentes banais pela vida afora que poderiam ter mudado o curso do meu rio.
O destino, este pecador mortal, parece brincar com a nossa sorte, é aleatório, impessoal. O destino resolve:
- Agora vou escolher... Aquela moto amarela. Pronto! 
Um rapaz atropelado, talvez com sequelas, talvez dependente, melhor morrer.
E se quem dirige este ônibus, que transporta passageiros de pé, esteve insone, tomou um remédio de tarja preta, fora do prazo de validade, que a mulher encontrou na gaveta da patroa e decidiu experimentar.
Quem sabe com quantos me encontrei pelas ruas, quantos cumprimentaram de passagem e já embarcaram?
Agora que temos todos mais tempo para viver, talvez devêssemos alinhavar nossas páginas já lidas, todas juntas.
Jamais voltar a ler o que passou, não bisbilhotar nas entrelinhas.
O susto de ter sido dispensado pela sorte tantas vezes poderia ser fatal.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

"Um dia, um gato"


























Felipe!
O primeiro animal de que gostei de verdade.
Antes eu era esnobe, bicho era bicho.
Abri meu coração e aceitei amá-lo.
E a todos os outros depois dele.
E foram muitos.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Antes que seja tarde!


Quando fomos brindar, na virada do ano, alegres com os bons ventos que sopravam, abrimos o champanhe gelado em meio às explosões dos fogos... 
Foi triste, confesso.
A rolha saiu molenga e o espumante deslizou suavemente para o chão, uma tinta marrom em agonia. Colocado nas taças, o líquido quase nada borbulhava, sua cor era âmbar. 
Ao primeiro gole, o gole do brinde, o gosto era metálico, o cheiro era velho, deteriorado. 
Desistimos.
Faz um mês, ganhamos outro champanhe, novinho! Por umas duas semanas ficou no bar... 
Uns dois dias atrás, decidi colocar na geladeira, pensando: - Não vá perder outra joia!
E hoje, vésperas do carnaval, lembrei-me da garrafa, que a tudo iluminou! 
Estava pronta para mim, e eu para ela.
Telefonei à minha hóspede, habitual e querida: 
- Você vem antes do Natal?
- Não sei...
Decidi abrir a garrafa, antes que fosse tarde.  
Pop! A garrafa exclamou, exultante!
Seria o gênio? Não, não era...
Mas, qualquer dia é dia para comemorar!
Mesmo que seja hoje.
Mesmo que seja cedo demais!