terça-feira, 10 de agosto de 2010

O último sono

-"Tita, estou com o gatinho da Helena, ele é cinzinha, tem o peito e as luvinhas brancas e olhos verdes."
Algumas horas depois a Tiaberé tocou a campainha e eu chamei a Helena para ver pela janela. "Olha, filhinha ela está com uma caixa, o que será? Vai abrir a porta pra ela."
Helena desceu as escadas levando a chave do portão que, ela já sabia, tinha um "joguinho" para abrir.
E ouvi a voz da Tice subindo as escadas com ela que dava risadinhas deliciosas.
As duas entraram com a caixa e de lá saiu um gatinho minúsculo e assustado.
Helena estava encantada, olhos brilhantes, carinha vermelha e feliz.
Uma senhora japonesa de Osasco era a dona da ninhada de  vira-latinhas. Quando entregou o Felipe disse  que queria que ele fosse muito amado e bem cuidado ou  deveríamos devolvê-lo. Nunca me esqueci disto.
Passamos por tanta coisa juntos...
- O Miguel foi comigo  ao veterinário. Pedi  que levasse o Felipe  no colo que eu iria passar de carro na esquina  e seguiríamos juntos. Ao parar o carro pude ver o Miguel desesperado com o gatinho mais desesperado ainda subindo-lhe pelo pescoço! Antes de chegar ao consultório, paramos no primeiro pet shop do caminho e compramos uma bela caixa de transporte que temos até hoje.
- A visita à Dra Márcia para as vacinas e um primeiro exame - "Olha só, ele tem o rabinho quebrado!"  Explicou-nos então que ele deveria ter ascendência de gatos siameses, raça em que é comum rabinhos partidos, ou então quebrara-se na confusão dos muitos filhotes embolados na barriga da mãe.
- A difícil decisão de castrá-lo para que não marcasse teritórrio em cada canto e eu que não sabia nada de animais fui gostando muito do assunto. Vi os efeitos da acepromazina pela primeira vez - ele olhava para mim, fixamente e o veterinário perguntou, ele já está sedado? e eu: Não, ainda está de olhos bem abertos!!!
E aprendi, fui  aprendendo com ele.
Conheci uma sala de cirurgia veterinária, observei a forma de prender o bichinho para o procedimento e assisti boquiaberta ao evento tão simples e objetivo.
Viemos para casa e rimos muito do pobre, tontinho pelo efeito da anestesia tentando andar pelo corredor e já o amávamos tanto; ele  nos tornou uma família mais feliz. 
- Helena telefonou para o Miguel: "Papai, o Felipe sumiuuuuuuu"  e toca a chorar!  Havíamos procurado por toda parte ele tinha desaparecido e procuramos de novo e de repente ouvimos um miadinho bem fraco, que vinha de onde? De onde?  Na desordem do quarto da Helena, cheio de brinquedos, roupinhas e livros havia uma gaveta de escrivaninha aberta. Ele havia se enfiado atrás da gaveta e poderia ter sido amassado se alguma alma mais organizada passasse por ali.
Foi o primeiro dos muitos resgates.
- Teve o telhado altíssimo do vizinho da frente que eu escalei sem medo até voltar a colocar os pés no chão com o gato no colo e começar a tremer;
- O telhado da área de serviço da vizinha de baixo de onde foi pescado pelo Miguel com uma rede improvisada;
- O telhado da casa da esquina onde ele sobreviveu três dias de inverno e chuvas às custas de pedaços de carne que  a boa alma que morava embaixo, já saturada de tantos miados, jogava pra ele;
- A grande aventura no Rio quando ele sumiu por quase uma semana e foi encontrado por acaso no telhado de um sobrado de pé direito bem alto, que ficava ao lado de um terreno baldio. Neste terreno estava um felino desconhecido que um caçador de gatos imaginou que pudesse ser o meu. Às três da manhã, Miguel e eu fizemos estrepolias dignas do Cirque para resgatá-lo;
- As patadas na Poli e sua liderança absoluta entre os Rottweilers da casa;
- O salto que deu sobre o dorso da Poli, feito um tigre sobre um búfalo quando ela cismou com o Fred - o outro gato - que ele nem gostava muito;
- Os inúmeros passarinhos, borboletas, morcegos e pererecas que capturou e veio nos oferecer ou comer nos  escondidinhos da casa;
- A hepatite tóxica  depois de ter comido o rabo de um calango provavelmente temperado com agrotóxicos;  - O soro de hidratação no colo da veterinária e a carinha de fastio e raiva do gato adoentado;
- A noite que passou internado quando tripudiou todos os funcionários da clínica e em meio aos rás e fus, ao ouvir minha voz, miou feito um filhotinho;
- A terrível esporotricose, que eu já tinha visto em pessoas e que começava a se tornar epidêmica entre os gatos no Rio. O tratamento demorado e zeloso - salvá-lo, acreditar nele e em mim, não desistir.
Foi a esporotricose que diagnostiquei clínica e microscopicamente que me fez pensar em cursar uma nova faculdade e abrir de vez meu coração e os livros de veterinária.
O aprendizado, as novas amizades, todos os outros bichos, várias espécies, vários tamanhos.
Helena e seu gato juntos, mais de 15 anos salvando vidas, pricipalmente a minha.
Hoje que estou velando o último sono torporoso e dispnéico do meu estimado amigo, ainda quero que ele fique mais um pouco com a gente. Nunca desisti dele. Mas hoje não posso mais.
Ele precisa partir, vai gato,  ser  anjo na vida.
Nos veremos na quarta dimensão, onde me disseram que os gatos são só o sorriso.



Um comentário:

Letícia disse...

Que lindo tia! Também acho que encontraremos todos os nossos bichinhos correndo felizes na quarta dimensão. Todos os Felipes, os Freds, as Zoés, os Pablos, os Kins e todos aqueles que foram só cores: os pretinhos, os nenezinhos, os branquinhos. E também correremos com eles com a certeza que não irão a mais nenhum outro lugar. Mil beijos, te amo. Leticia