sábado, 31 de outubro de 2009

Animação

Estava sentada no tapete em frente a TV e assistia a um desenho animado. O tempo ainda não tinha horas para ela. O elástico da calcinha incomodava um pouco; ela ajeitou e ficou com a mão por ali e se acariciava. Ficou esquecida do mundo, distraída com seu corpo e olhava para a TV sem reparar nas imagens. Mordia a ponta de um cacho de cabelo e deitou-se de costas com os joelhos dobrados. Balançava levemente as pernas, gostava daquela coceirinha.
Mamãe entrou para chamá-la para o banho. Ao vê-la distraída, antes de pegá-la no colo perguntou:
Quer fazer xixi, querida?

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Feriado

Este fim de semana promete! O sol resolveu brilhar, o mar continua lindo e estou voltando aos meus exercícios. Mas o melhor de tudo é que esperamos Helena para o feriado. Já temos muitos planos, somos amigas há tanto tempo! Muitas conversas e risadas depois, enquanto ela cochila no fim da manhã, Miguel e eu vamos comentar mais uma vez, a falta que ela nos faz.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Ora, técnicos!

Eu bem que poderia ter comprado uma nova. Ficava livre deste entra e sai de técnicos abusados ou indiferentes ou o pior, que não têm a menor ideia do que estão fazendo.
-"A parte mecânica está reformada, o defeito agora é elétrico, é outra coisa."
Aos poucos dava uma máquina nova!
-"Não, a máquina da senhora é muito boa, vale a pena reformar!"
Estão é construindo uma máquina frankenstein, droga! Depois da reforma mecânica ela saiu dançando pela área de serviço, quase escapole pela porta.
Depois foi a geladeira. O técnico veio, abriu as duas portas e ficou um tempão olhando lá dentro, com as mãos apoiadas na cabeça e os cotovelos nas portas abertas.
Perguntei: -" o senhor encontrou algum defeito?" E ele ríspido: - " ' olhando aqui!"
Depois, com um sorriso meio forçado disse que a deixasse descongelar por 24 horas - os canos estavam entupidos de gelo - e que quando eu colocasse para funcionar no dia seguinte, ela estaria novinha em folha. Estava mesmo, mas com o mesmo defeito.
No hospital, o técnico do Rx também agiu estranhamente. Sentia que ele mexia no meu tórax para lá e para cá, virava mais para a direita e outra vez para a esquerda... Muito chato.
E ainda teve que repetir tudo e começou toda aquela apalpação outra vez. Fiquei quieta e maleável, as mãos acima da cabeça. Foi um assalto!
Técnicos!
Outro dia soube que abriram vagas para técnicos em geral e que uma parte substancial dos inscritos tinha curso superior, muitos até pós-graduação... Salário base de seiscentos reais...
Bom, um torneiro mecânico pode conseguir muito sucesso, todos sabemos disso.
O que falta saber, tecnicamente falando, é se estão preparados para ele.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Um presente

Com papéis coloridos e uma tesoura sem ponta, recortou vários animais para a fazenda. Depois passou cola com capricho e pregou os bichinhos na grande folha de papel verde. O porco era gordo e rosa-choque e o boi acabou ficando sem uma orelha, mas isso não tinha importância. Depois de colar, apertava a mão espalmada sobre o recorte e esperava um pouco. Restinhos de cola ficaram grudados nos dedos e ela passou alguns instantes retirando aquela pele postiça. O indicador da mão esquerda ainda ardia naquele corte que havia feito com a folha de papel. Segurou a cabeça com as duas mãos apoiando os cotovelos na superfície da mesa e admirou o resultado. Decidiu desenhar uma árvore perto do chiqueiro, uma árvore carregada de frutas vermelhas e redondas.
Depois escreveu bem forte no canto do papel:
Para o papai.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Pequenininha

Com os pés sujinhos de terra, entrou no pátio e foi jogar amarelinha. Quando chegou ao céu, reparou que subia, pela inclinação do terreno. Já ouvi dizer que o céu não é acima e fica por toda parte. Mas ela estremeceu de prazer ao pensar que chegara ao paraíso, ela que sempre pedira com fé ao senhor, que a ajudasse a encontrar uma ou outra pedrinha.
Passou o pé sobre a marca do céu para apagá-la, já que iria morar ali, precisava de mais espaço.
Com o giz desenhou umas flores, enfeitando sua nova casa e já planejava desenhar o quarto, quando ouviu mamãe chamar. Correu até a porta da cozinha e ganhou um docinho de goiaba, era a hora do lanche. Voltou para o céu e comia o doce e limpava o açúcar cristal na bainha do shortezinho. Acompanhou uma trilha de formigas, algumas carregavam pedaçinhos verdes, outras voltavam apressadas para buscar mais.
Vovó olhou pela janela e comentou: Que graça, ela sabe brincar sozinha!

H

O H de Helena, esta tecla do meu computador, insiste em não escrever. Talvez por ser inspirada - fala-se como se não existisse - seja a letra mais misteriosa do alfabeto. Seu som é imprevisível ao combinar-se com outras letras e a estrutura forte do seu desenho me lembra Helena.
As torres gêmeas, se tivessem o braço de ligação nem teriam caído.
Seja maiúscula em forma de degrau de escada, seja minúscula em forma de cadeirinha, nunca deixa a desejar. Convida ao dar-se as mãos, convida ao descanso.
Aqui no Rio, o H faz parte do sotaque: Beijosch, baschta, vamosch!
E é bastante eclético:
Shhhiiii, as crianças estão dormindo.
Hahahaah, isso é mesmo muito divertido!
Ah, não, não vá embora ainda.
Hein? quem disse essa bobagem?
Preciso apertar com força a tecla desta letra que amo tanto.
Saudades de um abraço que dizem ser o melhor!

domingo, 25 de outubro de 2009

Banho de imersão

Nunca tivemos banheira lá em casa. Com tantos irmãos para tomar banho e um só banheiro, era preciso ser rápido e objetivo.
Se queríamos tomar um banho de imersão, íamos para o tanque, que era enorme e a gente se revezava, submergindo por turno, nós e o cachorro.
Em São Paulo, lá pelos 24 anos, tive minha primeira banheira, em um apartamento antigo, mas espaçoso. Ela era de um azul duvidoso, não tinha bem uma torneira, só um cano de onde saía água e eu sempre perdia a tampa do ralo e precisava improvisar, vocês sabem como.
Mas eu tomei alguns banhos muito confortáveis e relaxei bastante nos fins de tarde, esperando o Miguel chegar do hospital.
Comprei sais de banho, shampu em gotas, espuma de banho...
Preparava o ambiente com aquecimento e luz indireta, colocava o rádio para tocar música clássica e preparava toalhas e cremes e pantufas para depois do banho.
Numa das primeiras vezes que a Renata foi nos visitar, resolvi preparar um banho de imersão para ela, que gostou da novidade e esperou.
Caprichei no carinho, como se fosse um presente. A banheira era custosa de se encher, o fluxo de água era lento e eu precisava agitar as mãos com vigor para fazer espuma e misturar os sais.
Quando estava tudo pronto disse a ela que aproveitasse.
Uns cinco minutos depois ouvi a porta do banheiro se abrir e ela saiu, já enrolada na toalha felpuda e com outra toalha na cabeça.
-" Já???????"
- " Ai, Titinha, eu fiquei pensando, pensando, senti uma angústia e resolvi sair."
Tá certo, a ideia era curtir e não ficar angustiada.
Nós duas, farinha do mesmo sertão, temos formas diferentes de relaxar.
Eu, tomo banhos de imersão em São Paulo e faço caminhadas no calçadão aqui no Rio. Enquanto isso penso, para existir.
Ela toca violão e canta e conversa bastante. Sua terapia é interagir.
Há pouco, contou-me que começou a caminhar e que dependendo da música que está ouvindo, ensaia uns passinhos de dança!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Multiverso

Havia uma escada bem comprida que usávamos como balanço. A escada ficava apoiada na perpendicular, sobre uma mureta que separava o terreno da casa, do terreno ao lado. Eu, mais pesada, ficava do lado mais curto, que era um corredor de uns dois metros de largura na lateral da casa e que levava ao fundo do quintal. A parte mais longa da escada ficava no terreno que havia ao lado. A gente sentava no último degrau de cada lado.
O Fausto adorava balançar, ele ia às alturas. Era divertido, ficávamos embalados, um no peso do outro e passávamos um bom tempo sem conversar, cada um pensando nos próprios dilemas e nas grandes preocupações que se têm aos 10, 12 anos..
Queria me lembrar de quando foi a última vez que balançamos, o Fausto e eu.
Nem me lembro de quem teve a brilhante ideia de colocar a escada assim, que pena.
Não sei porque a memória nos dá estes tombos.
Mas acho ainda mais tristes as lembranças que temos do que não ocorreu de fato. Uma mistura de sonhos, com fantasias e uma pitada de realidade. Tenho tanta certeza de alguns momentos que não existiram, que começo a acreditar nos universos paralelos, no multiverso... Talvez eu esteja vivendo a fantasia real em outra dimensão. Será que optei por um caminho diferente meio transversal, onde não há lugar para escadas e balanços. Será que tenho um blog e falo de coisas sérias, noticias do mundo, que aqui até prefiro nem saber. Será que além de mim, sou também um menino, um ladrão, uma operária chinesa... Talvez, quanto mais universos alguém participe, mais condescendente e solidário é neste nosso mundo, por ter a experiência cósmica de se adivinhar em outros papéis. Gosto da sensação de me sentir uma pessoa plena, íntegra, multifacetada, lapidada.
Nossa, acho que desta vez viajei para longe demais...

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Entardecer

Que pena que entardeci...
Poderia ter compreendido melhor meu compasso, ao descobrir alguns recantos nas entrelinhas do meu dia, usando cada ponto bordado no tapete, como o início de um ponto de vista.
Quisera acordar ainda no meio de uma manhã, tomar café com leite, comer pão com manteiga e ir relaxar na rede da varanda da mamãe.
Aproveitaria os detalhes das rachaduras do teto, compreendendo seu desenho caprichoso e bem humorado.
Argumentos ditos ao pé do ouvido seriam absorvidos com muita calma e mastigados como as frutas maduras da estação. Sementes brotando àtoa, as folhas se espreguiçando.
Almoçaria sem cálculos, voltar a comer por prazer e aventura.
Faria uma puxa, fervendo água com açúcar e limão, você se lembra como era bom comer da colher?
Faria um bolo recheado e confeitado, a massa batida com zelo , cuidados no recheio cremoso e na cobertura branca, enfeitada de florezinhas.
Sentiria o calor na boca do forno; e nos pés descalços, o chão frio de ladrilho vermelho da cozinha.
E quando houvesse uma chuva, daquelas pesadas, choronas, ficaríamos encharcados, meus irmãos, eu e o cachorro, felizes, jogando fora algumas horas da preguiça, que não podemos mais.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Argentês

Era argentino no Brasil, paciente em um hospital e sentia muita dor.
Palidez e suores substituíam, na pele, o sal e o sol da praia.
Estava confuso, inquieto e sozinho, compreendia mal o português, além de estar um pouco surdo pela dor.
Foi levado às pressas para exames de emergência, talvez precisasse de um cateterismo; acabou encaminhado para a sala gelada do exame.
O médico vestido como um cirurgião, com máscara e gorro e óculos, além de tudo falava para dentro. Ele não compreendia.
O médico achou melhor chamar alguém que pudesse facilitar a comunicação.
Saiu da sala e perguntou se alguém sabia falar espanhol.
Um estudante novinho, muito solícito, levantou-se rapidamente e acompanhou o médico.
Em um momento do exame disse ao rapaz que pedisse ao paciente para respirar fundo.
E ouviu o poliglota dizer:
" espire undo"!

Sinuca

Uma dor positiva demais para ignorar, fez-me rever prioridades.
Já estava acostumada a amanhecer com o dia e atravessar as horas, cumprir as horas.
Se estou cumprindo os minutos, tão custosos de passar é que não tenho outra saída, estou numa sinuca.
Já olhei por aí, plantei um vasinho, reguei uma rosa, fechei uma porta e depois abri e saí para ver o tempo cinzento e monótono, que não passa, não passa.
Dormi umas horas, acordei com frio, fui fazer uma sopa.
Umas frases brotaram e enquanto a lentilha borbulhava com fervor, anotei num caderno.
Cheiro bom de sopa de lentilhas, gosto de saudade.
Enquanto como, às colheradas, ouço o som familiar das minhas pessoas arrulhando ou gorjeando ou rindo.
Como sou feliz!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Bugalhos

Um bolor em forma de gota cresceu em meu campo visual.
Não sabia a quem recorrer e fui ver um pai de santo que me aconselhou repouso e anti-inflamatórios.
As pálpebras também estavam inflamadas e meu olho, quase fechado, parecia um sapo no sal.
Usei colírios que o farmacêutico indicou, fiz as compressas da minha mãe e coloquei gelo por minha conta, alternando as experiências. Meu olho continuava macilento.
Uma pomada fez muita sujeira na fronha e lacrimejei durante todo o fim de semana.
Quem me viu veio perguntar que dores de amores eram aquelas, tentando me consolar porque eu chorava e ao virem o estado lastimável do meu bugalho faziam uma cara estranha de ...eca!...
Os óculos escuros, com o tempo fechado, denunciavam certo recato e meu nariz vermelho e a caixa de lenços faziam de mim um enlutado.
Fui assistir ao "Bastardos inglórios" e saí consciente de que tirar o uniforme não desfaz o monge.
Assumi meu olhar patológico e fui em frente.
Ao assumir publicamente meu olhar caprino, também tornei público meu desdém pela coisa toda.
E magicamente lá se foram todos os sintomas.
Hoje acordei bela dona!
Era olho gordo.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Um delicioso texto da Helena...

Helena escreveu este texto para mim. Preciso dividir com vocês... Aproveitem!

Ela é forte. E como é forte. Bota forte nisso. E como todos nós, às vezes sabe disso, às vezes nem tanto.
Ela já ficou muito doente (mesmo), muitas vezes. Desde criança. Aliás, quase todas as coisas que eu já tive ela conhece bem, porque também teve. Genética ou não, ajuda ter alguém que entende bem a coisa. Mas tudo isso passou.
Hoje ela tem um coração invejável (em muitos sentidos). Com ele, corre bem, malha bem, escreve bem demais, cuida (e muito bem) de mim, dos gatos, da casa, do meu pai, do Haus, do mundo. Faz os melhores bem-casados do planeta, só pra mim.
Existe uma expressão em inglês que diz "levar o coração na manga". Sempre lembro dela quando ouço. O coração potente é o que a define. Em tudo. Está sempre presente.
Se ela faz, FAZ. MESMO. Até o fim. Bem feito. Bonito. Nota dez.
Meu pai costuma dizer que às vezes "ela some, aí depois aparece". Sempre tive o costume de, ao sair com os dois, ficar com um olho em cada um. Porque ele vai pisando seu caminho de sempre, confortável. Ela até acompanha, mas aí vem um passarinho tão bonito que ela vai atrás, só um pouquinho. Às vezes volta sozinha, em outras eu chamo o passarinho para vir conosco, aí ela vem também.
Com ela, sem grosseria. Faz com que ela se encolha. Mas não para sempre. Quando chega no limite, o coração aparece, puto.
Também trago sempre o meu coração comigo. Aprendi com ela, tenho orgulho disso. Aprendi a trazer o coração, o casaco, o passarinho dela, a música, a respiração, a bebidinha, as balinhas, o crochê, o gato. Ops!
Não ligue, às vezes a gente se confunde.

Minueto

A madeira velha da escada em espiral, rangia sob os passos rápidos e tagarelas das meninas do colégio. Era um grupo homogêno; quase todas dobravam duas vezes o cós das saias pregueadas do uniforme para deixar a mostra mais três dedos de coxas saudáveis. O cabelo era solto ou preso em um rabo de cavalo, mas todas usavam franjas.
No patamar da escada, uma porta se abria para o grande anfiteatro, àquela hora, na penumbra. Algumas abriam as cortinas depois de colocarem as mochilas amontoadas sobre a mesa de fórmica branca. Outras tiravam logo os sapatos e meinhas e subiam ao palco por uma das escadas laterais.
Era dia de ensaio.
O texto da peça era uma adaptação de Romeu e Julieta de uma revista em quadrinhos que encontraram na banca de jornal.
Ali havia dança, havia romance e brigas de rua e também havia beijos.
Em um colégio de meninas como seria possível representar este clássico diante dos pais e da Madre Superiora?
Nem pensaram nisso.
Lutas? Usariam as espadas de plástico dos irmãos.
Beijos? Simulariam beijos na hora, nem era preciso ensaiar.
Gostavam de ensaiar o baile no castelo dos Capuleto porque o minueto era uma dança graciosa e divertida.
A "Julieta" era muito branca e recatada e em casa, seus cabelos pesados e pretos eram escovados 100 vezes todas as noites. Ali também ela representava...
Pena que os beijos entre meninas ainda não eram permitidos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Cotidiano

Veio o moço da máquina de lavar. Que também conserta geladeira doubleside. E arrisca a limpeza de ar condicionado e coifa e qualquer outra coisa. Brilhante! Será que ele trocaria o rabicho da descarga?
Está chovendo e ele veio na chuva, com um carro queimando óleo. Fui abrir a porta e estava um cheiro... Pensei em algum incêndio. Ou na lavadora se queimando sozinha.
Pelo menos, este rapaz é bom de serviço e tem uma carinha alegre.
Mais cedo veio um outro fazer orçamento para consertar a lavadora...sem chance.
E da última vez que ela pifou veio um chato, raspante, odioso. E depois pasmem, em um outro dia, eu acreditando que nunca mais veria aquela esquisitice, lá estava ele para ver a geladeira. Muito me irritou, nada resolveu.
Eu paguei pra ficar com raiva. Parece que neste ramo, os polivalentes tem mais futuro.
Aqui no Rio existem anúncios de "marido de aluguel". Fiquei boba. Aí entendi, são estes que consertam tudo.
E agora?
Agora nada.
Teste de esforço excelente, posso correr à vontade. Tenho um pé de vento. Pé de valsa não, sou trôpega.
Chuva, chuva, chuva, croché, Internet, café.
Preguiça de viver. Eu às vezes tenho.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sangue e vinho

Sangue e vinho. Uma experiência sombria. Foi quando experimentou o vinho e pegou gosto. Divertiu-se, perdeu a conta das taças e a hora da madrugada. Foi levado carregado para casa pelos amigos, que o colocaram na cama e se foram sem comentários...
Dia seguinte, a porta do quarto trancada, duas horas da tarde e nada do menino acordar... Alguém teve a ideia de abrir as venezianas da janela por fora e ver o que se passava ali dentro. Foi um susto! O menino estava largado sobre a cama e ao redor dele uma grande poça de alguma coisa viscosa e vermelha...É sangue! Vamos arrombar a porta! É sangue, meu Deus, ele está machucado. Ao entrarem pela porta arrombada, perceberam que não era sangue nada, apenas muito, muito vinho meio digerido, empoçado no chão do quarto!
Não sei se existe alguém no mundo que nunca tenha tomado um porre. Há dias em que estamos distraídos, ou tristonhos ou alegres demais. A base do prazer de beber é deixar-se levar, perder o controle. Se voce não consegue perder o controle com serenidade é pouco provavel que beba demais, ou de menos.
A primeira vez que bebi alguma coisa parecida com vinho foi no Natal e eu tinha 13 anos. Porque era Natal, papai sugeriu um brinde e eu também quis. Se bebi uma taça foi muito, mas logo fiquei com o rosto afogueado e com o riso solto. Papai segurando sua taça, olhou para mim, deu uma estranhada e disse. -"Voce não vai beber mais, não!"
Fiquei sem graça, estava achando tão bom... foi a primeira vez que perdi as rédeas por causa de bebida.
Muitas outras vezes depois, muitos porres vexatórios depois e eu ainda não aprendi a beber com moderação.
Gosto de beber, gosto da tonturinha, gosto de exagerar.
Não me peçam moderação, eu sou dos extremos.
E em tempos de lei seca, vale a pena convidar os amigos e beber em casa, hospedando todo mundo. Saúde!
Vai ser divertido acordar no meio da tarde seguinte e ir conferir se salvaram-se todos.

Oração

Aconteceu ontem, terça-feira, dia 13, às 18:00 hrs.
Alguém falava alto em um microfone, bem em frente a minha casa. Pensei que talvez estivessem fazendo uma festa para as crianças da escola, com algum atraso e tentei relaxar e abstrair.
Depois achei que era muito barulho para tão poucas crianças.
As vezes, passam por mim, na rua, carros velhos com um motorista que vai falando a que veio através um auto-falante instalado no teto. Por aqui aparecem aqueles que compram de tudo. "-Liquidificador velho, geladeira quebrada, panela velha, computadores velhos, pedaços de ferro.."
Também não fazia sentido porque o som estava sempre da mesma altura, não ia diminuindo conforme se afastava.
Talvez houvesse algum evento no condomínio, ou no clube...sei lá.
- " Ave Maria, cheia da Graça....." ah não, não quero rezar por tabela. Os meus momentos de introspecção, quando falo com Deus, são tão íntimos...
Não acredito que resolveram vir rezar e cantar aqui na minha porta!
Respeito, mas não aceito.
Segundo a Helena, em um grupo de pessoas reunidas ao acaso, o que canta mais alto é justamente o mais desafinado! Estava muito feio. Deus não haveria de gostar...
Ainda atordoada com a cacofonia, lembrei que pelo menos o Miguel ia demorar a chegar e não ouviria tal sacrilégio. Mas ele chegou em seguida e tinha passado pelo foco de música. Vinha de uma igreja que faz uns dois anos foi construída, a pelo menos quinhentos metros daqui de casa.
Eles cantaram aos berros e falaram aos gritos, ao microfone, até as oito da noite.
Perguntei ao Miguel se não seriam aqueles cristãos deslumbrados?! (a palavra certa é "carismáticos".)
Estou muito apreensiva.
Atualmente, é difícil ver um quarteirão sem uma igreja deste tipo.
Dessas que as pessoas abusam do direito de expressão.
Prefiro a oração do vento e do mar; eles que falam diretamente com Deus e são bem mais afinadinhos.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Os cantos do quarto

Quando sair, deixe a janela e a porta abertas para o ar circular e acordar o quarto.
Porque os quartos também dormem, às vezes até sonham e às vezes sentem dores. Cada parede tem uma cor secreta, só pessoas muito íntimas sabem quais são. Nos cantinhos tridimensionais das paredes e teto e chão, estão escritas as indicações básicas: Este lado para baixo. Ou, cuidado, frágil. Empilhamento máximo - dez.
Muita gente nunca viu estes cantinhos. Só a faxineira passa a vassoura ou o espanador e ela nem presta atenção, que seus devaneios a levam para o próprio quarto.
As aranhas adoram construir suas teias nestes cantos; eles ficam ainda mais misteriosos. As paredes tem um sistema de drenagem que passa pelos cantos. Se entopem, há uma congestão tão aguda que dá calafrios.
Algumas pessoas nem ligam, vão embora trabalhar e quando voltam para dormir o quarto está azulado de desconforto.
Portanto, respeite as dores do quarto. Entre devagar e respire fundo. E trate de desobstruir o encanamento e repare bem nos cantinhos.
Esta pode ser a diferença entre ser feliz ou não.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Faz três noites que não durmo

Tenho uma topiária muito graciosa no jardim, velhinha e em forma de mico, que sempre me encantou. Queria restaurá-la e procuro alguém aqui no Rio que faça esta arte, mas mesmo pela internet está difícil.
O Felipe, meu gatinho de 14 anos, aliás, meu não, da Helena, presente da Tiaberé quando ela fez 7 anos, está muito doente. Tenho esperanças de que ele se recupere, é um gatinho muito valente. Desde pequeno, sempre foi à rua e por conta disso já se meteu em muitas encrencas.
Há uns 10 anos, (ainda morávamos no Novo Leblon,) chamei por ele, que não respondeu nem veio rápido encontra-se comigo. Esperei um pouco, chamei de novo. Saí pelo condomínio procurando e chamando, quem me viu certamente pensou -" lá vai a maluca! ". Dia seguinte e nada do bichano voltar. Falei com todo mundo que encontrei, pensava que ele poderia ter morrido, mas voltava a procurá-lo quando me lembrava de que se estivesse vivo, estaria assustado ou ferido.
Soube que ali perto morava um outro maluco, que passava algumas noites da semana tentando engaiolar gatos vadios; esses que todo mundo acha que pode ir deixando assim, pelos condomínios, famílias inteiras de felinos meio mortas, abandonadas à sorte fortuita de alguma criança apaixonar-se por algum deles e levar para casa. Os mais fortes acabavam sobrevivendo e por sua vez tinham seus filhotes e tudo se repetia. O rapaz caçava os gatos para levá-los para cuidados veterinários, depois castração e então colocá-los para adoção. Tarefa difícil e muito corajosa. Eu mal posso ver fotografias de bichos abandonados em portas de pet shops que já fico toda lacrimosa.
Daquela vez o meu bicho tinha me abandonado e faz tempo que decidi não deixar que me abandonem impunemente.
Resumindo, fui atrás do rapaz e pedi a ele que se, em seus passeios noturnos, encontrasse um gatinho cinzinha, com peito branco e rabinho quebrado, que me avisasse, era o meu!
Confesso que já estava resignada, na terceira noite...
O telefone tocou lá pelas três da manhã. O moço tinha visto um gato diferente em um terreno baldio, na rua paralela a minha. Deixamos a Helena dormindo (com um bilhetinho explicativo caso ela acordasse) e fomos Miguel e eu, felizes, oba, só pode ser ele, só pode ser ele.
Com a lanterna vimos no meio do mato um bichano meio malhado, meio amarelo... eu não acreditava. Resolvi chamar, quem sabe era uma camuflagem?
Chamei e o Felipe respondeu....mas de cima do telhado da casa ao lado do terreno baldio!!!
Ficamos conversando os três no meio da rua e eu chamava o Felipe e ele preso lá em cima sem conseguir descer... A porta da sacada do segundo andar da casa se abriu e um casal meio tonto de sono, cabelos desgrenhados, apareceu. Falei com os dois com muito jeito, se me permitiam por favor, buscar meu gatinho e eles disseram que ele estava lá havia três noites, miando miando...já pensaram? Que bom alguém acabar com aquela tortura!
Entramos rapidamente (lindos quadros na parede!) e fomos na parte de trás da casa onde o telhado era mais baixo. Subi em uma mureta e o chão duro me esperava uns dez metros abaixo. Chamei e o Felipe veio e eu quase encostava nele, faltavam centimetros. Naquele equilíbrio precário resolvi subir nos ombros do Miguel, assim conseguiria alcançá-lo. Mas quando me viu tão perto, com medo de cair, o gato não se aproximava tanto. Ofereci um biscoitinho e ele estava faminto e eu quase pegava e ficamos nisso minutos intermináveis, pelo menos para o Miguel que me equilibrava nos ombros.
Num impulso temerário, consegui agarrá-lo por um braço e puxei com força, ele caiu em cima de mim e eu desci dos ombros do Miguel; nós tres estressadíssimos e saímos da casa agradecendo muito, diante do olhar aliviado do casal.
O Felipe ficou bem depois de um banho, muito carinho, comida e água.
No dia seguinte, quis oferecer aos donos da casa, um agrado e fui a uma floricultura muito especial, onde conheci as topiárias. Eram bichos vários ou outros arranjos interessantes . Eu fiquei com o tal mico que tenho até hoje e levei para os anfitriões do Felipe uma topiária de gatinho, muito simpática. Mandei entregar com um cartão, agradecendo por nós quatro!
Durante toda aquela semana, várias vezes me peguei cantando uma variante de uma canção infantil:

"Faz três noites que não durmo, ô Lalá, pois perdi o meu gatinho."

sábado, 10 de outubro de 2009

Itinerário

Saiu muito cedo, comprou um pãocomqueijo na esquina, pegou o ônibus ainda vazio e sentou-se próximo à janela.
O motorista ligara o limpador de para- brisas na maior velocidade.
(Preciso fazer as unhas) pensou, enquanto dobrava a barra molhada do jeans.
Dentro do coletivo aquecido, avaliava a mudança de sua vida naqueles meses.
Antes não saía e agora quase todos os dias atravessava a cidade para estar na loja.
Acabou cochilando e em uma freada barulhenta abriu os olhos e viu um dia nublado mas claríssimo pela reflexão da luz nas nuvens.
(Dias nublados assim deixam o coração inquieto; nossa, que nariz grande e cheio de cravos tem aquele homem; será que já passamos pelo Pão de Açúcar.)
Ficou prestando atenção para tentar identificar alguma coisa, mas tudo parecia diferente.
O ônibus já estivera lotado e aos poucos os passageiros iam diminuindo.
Ficou apreensiva quando a última passageira desceu; resolveu perguntar ao motorista quanto faltava para chegar à rua Bosque.
O motorista disse que estava quase chegando ao ponto final, a garagem; e que o próximo ônibus deste itinerário só sairia daí a uma hora. (Como faço para chegar na Barra Funda.) O motorista nem ouviu, tinha descido do onibus esfregando as mãos, queria um café.
(Como pude perder o ponto. E agora como faço para chegar.)
Contou o dinheiro, pensou em um táxi, mas não fazia a menor idéia de valor da corrida.
(Estou perdida.)
Foi caminhando até um ponto e ficou por ali, lendo os letreiros dos ônibus, desanimada na estiagem úmida.
Então entrou no primeiro coletivo que seguia para o Bom Retiro.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Primavera

Chuva e frio na baía da Guanabara.
Estranha primavera.
Há flores sim, por toda parte, há flores lindas.
Meus vasos transbordam orquídeas, lírios, rosas.
Estranha chuva, estranho frio. Há uma inquietude, "o que se passa".
Observe com algum afastamento no tempo e no espaço; veja que estamos indo e é inevitável.
As explicações para os eventos do mundo constatam as mudanças, mas não trazem diretrizes.
Os buracos negros que cavamos na terra cobram a energia dissipada.
O buraco negro cósmico mais próximo nos dirige sua mirada, ele nos aguarda.
Hipnotizados, pequeninos, só sentimos o frio estranho, a estranha falta de entropia.
Enquanto isso, o Barack Obama ganha o Nobel da paz!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Manual

Tenho o péssimo hábito de não ler o manual de instruções.
Não tenho paciência nem para abrir meus presentes ou compras sem destruir a embalagem. Algumas embalagens são caprichadas, belos pacotes e eu em geral presto pouca atenção, vou logo rasgando tudo.
Sofro aqui em casa porque o Miguel faz questão de ler os manuais, antes de qualquer outra coisa. Se não veio com o livrinho, pára tudo e reclama com o fornecedor: -" Onde está o manual de instruções?"
Eu adoro surfar pelo novo brinquedo, ir descobrindo por tentativa e erro, sou aflita e curiosa!
Tutoriais também são um pesadelo. Como vou seguir os passos para a conquista, cautelosamente? Depois de alguma etapas começo a ousar: -" E se...?"
Eu sei, eu sei que acabo perdendo um tempo enorme errando tanto antes de acertar e que dou muitas voltas, devo girar em círculos.
Mesmo assim sou incorrigível. Acho que vim ao mundo sem manual de instruções. Até a minha embalagem de vez em quando se rasga para que eu possa ficar à mostra.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Saltimbancos

Tive uma saltimbanca no meu jardim, durante muitos anos. Ficava boba observando suas estrepolias e as festas que fazia.
Agora, ela toca, canta e dança no Texas.
Já perambulou pelo mundo, anos a fio, a fincar estacas, a armar o circo e, depois dos espetáculos, desarmar e seguir viagem. Quando vem por aqui é tudo tão festivo, que nem vejo o tempo passar.
Fiquei habituada aos sons de afinação dos violões, sinto saudade de serenatas e casamentos ah, que amor de criatura!
Tem partes com os duendes, acho que enquanto dormimos, vai conversar com eles dentro do oco das árvores. Lá, tira medidas e faz roupinhas e enchimentos. Também aproveita, enquanto descansa e conta histórias, para criar serezinhos simpáticos e assá-los no forno.
Finge que é um deles, abusa da fantasia e quase nos mata de susto.
Mas isso nos diverte muito!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Balanço

Herdei de minha mãe, o hábito de balançar. Antes de dormir, na fila do banco, quando estou sozinha pensando na vida, quando não tenho mais nada para fazer. Balanço para me ninar, para me confortar, para fazer contas de cabeça, para pegar no sono.
Como mamãe sempre se balançou, acreditava que todo mundo fazia o mesmo. Mas não, as pessoas estranham. Uma amiga da família, com Alzheimer, em um momento de lucidez, exclamou para mamãe, que lhe fazia companhia: -"Mas a senhora balança, hein!?" E caiu na risada.
Não é aflição, não é aquele jeito de agitar as pernas ou os pés. É uma cadencia, num ritmo muito próprio, o corpo todo participa. Meu abraço também tem balanço, acho que danço quando abraço.
Ocasionalmente encontro alguém com esse gingado na alma, a quem abraçar é pura harmonia, é infinito prazer.
Acho que tem alguma coisa a ver com as marés...

domingo, 4 de outubro de 2009

Semelhanças

Comecei a faculdade de medicina em Uberaba em 1977, antes de casar e mudar para São Paulo. Fiz várias amizades nesses dois primeiros anos em que as matérias e os ambientes da faculdade são tensos - Anatomia, microcópio, provas práticas, gincanas.
Atualmente é ocasional que eu ouça falar de algum colega daquela época.
A Helena se forma este ano na ESPM em São Paulo. Desde o primeiro ano, tem uma amiga muito querida, que nasceu em Uberaba, como eu. Como se não bastasse a coincidencia, o pai dela foi meu colega naqueles dois anos de medicina.
Não sei onde ela aprendeu a lutar... no meu tempo a única academia de artes marciais de Uberaba era o Gaona, onde meus irmãos treinaram judô.
Gabi é muito sensível, mas sabe que tem "a força" e assim navega ao sabor das ondas, entre investidas intimidantes e recolhimento cauteloso.
Há uns meses foi de metrô até a rodoviária de São Paulo comprar passagem. Distraiu-se na viagem e no susto acabou descendo uma estação antes do terminal rodoviário.
Decidiu ir a pé. Isso parece tanto comigo que até dá aflição. Errar a estação e ir a pé? Mas essa sou eu!!
Ela é uma menina, parece recém saída da adolescência, puxa, ninguém vai acreditar.
Mas, olha, desta vez não estou inventando. Ela é de verdade e é maluquinha. Foi assaltada enquanto caminhava e reagiu, - "larga minha mochila, você não vai me roubar!" e o ladrãozinho, que tinha um canivete, levou uns bons sopapos e ela se feriu nas mãos.
Não sei quanto tempo depois ela tocou a campainha do apartamento de Helena. Machucada, magoada e assustada, depois de um tempo de conversa, concordou que talvez não devesse ter reagido.
Helena cuidou daquela figurinha fragilizada e depois me contou.
Eu fiquei ouvindo e cada cena era tão familiar... Nunca aprendi a lutar mas tenho um pequeno samurai aqui dentro e sempre acho que posso tudo. Também desmonto às vezes e em outras, adoeço.
E agora fico aqui pensando, porque será que entre tantos colegas de faculdade, a Helena foi encontrar na Gabriela uma de suas melhores amigas?

Mercedes

Ah, Mercedes, sua "negra" cabeleira e seu canto triste, assum preto argentino .
Ao ouvi-la cantar Violeta Parra, volto aos 17 anos e também agradeço à vida que tanto me há dado.
Na voz de Mercedes cantando Violeta, passei momentos profundos, de pura introspecção.
Foi a Renata, quem me mostrou a dupla Violeta-Mercedes.
A voz da Renata, era delicada e triste nesses versos tão bonitos. Ainda é.
Mercedes cantava forte, era densa, poderosa. Proibiram o seu canto e depois cantou no exílio.
Mas isso faz tanto tempo...
E hoje, de par em par a janela se abriu no céu para Mercedes entrar.
Que ela possa cantar agora com os querubins verdadeiros

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Destino

Frio e chuva. São Paulo. Atrasada, pego um táxi. O motorista escolhe o caminho menos pior. Ele nasceu em São Paulo, conhece muito bem a cidade, é taxista faz mais de 30 anos.
Meu telefone toca. É ela. -" Onde você está? Estou no táxi, chego aí em 15 minutos. Passe o telefone pro taxista que vou dizer a ele qual é o melhor caminho. Ele sabe, já chego aí. Não, ele não sabe, passe o telefone para ele. Hummmm, ela quer falar com você...Quem? Ela. Tá."
Ele escuta, ela fala.
-"Mas já estou fazendo este caminho! Sim, sim, não, sim, pode deixar, eu sei, está bem..."
Aflição. Dirigindo e falando ao celular. Não pode dar certo. "Olhe o guarda! O farol fechou!"
Uma lástima. Buzinas, motos, flanelinhas, balinhas.
Chego, 20 minutos atrasada. Esqueci que era tão difícil. É fácil esquecer.
Lá dentro, está escuro, mas aquecido. Cafezinho, água, poltrona confortável.
-" Olhe o que eu fiz!" Olhei. "Não, não gostei. Pode fazer de novo?" -" Posso". -"Então faça. Volto daqui um mês."
Dizem que chegar não importa. Que o importante é a viagem. Será?

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Balas

Era fim da tarde, hora da soneca da Helena, que tinha uns quatro anos. A porta do quarto dela ficava aberta e como morávamos em um apartamento pequeno podia ouvi-la de onde estivesse.
Às vezes acordava e ficava brincando com as mãozinhas; algum tempo depois começava um chorinho de desconforto e eu esperava mais um pouco, que era para ela aprender a esperar... coisa que nunca aprendi, por mais que tenha esperado. Quando eu não dava mais conta ia pegá-la no colo e ficávamos esperando o "nosso pai" (era assim que ela chamava o Miguel.)
Mas naquela tarde, aquele choro, eu nunca tinha ouvido. Começou do nada, sem barulhinhos anteriores, um choro forte e triste, quase uma despedida.
Corri lá.
-"O que foi, filhinha? e já fui tirando do berço.
Então ela me contou: -" Eu vi uma balinha, quando fui pegar, ela... ela, vooooooou"; e chorava
e chorava.
Acho que foi o primeiro "pesadelo" de que ela se lembrou. Foi um susto para ela, não fazia sentido. Afinal para onde teria ido a balinha?
Hoje ela me contou que perdeu uma outra balinha, (um prendedor de cabelo em forma de bala) e que está triste por isso.
Mas é uma tristeza conformada, uma tristeza adulta.
Por quantas perdas a minha menina teve que passar para ficar fortalecida.
Por que perder dói sempre e tanto.
Por que nos ligamos tanto a objetos que nem são comestíveis, mas que nos fazem falta como uma fome antiga.