quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Paraty

Foto do Helena de passagem por Paraty! Feliz Ano Novo, querida! Muitas novas praias para voce!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Boa viagem

Eu falei, avisei, presta atenção não vá perder o ônibus. Mas voce ficou distraida achando que a vida é a vida... Passa sim, viu e bem depressa. Na próxima estação há novidades e novos vilões, quem é, quem é, é o frevo e a balada que  recomeçam em  ritmo alternativo. No próximo ano, não perca o ônibus, nunca. Não perca tempo, nem  dinheiro. Sobressalte-se feito um coelho. Anime-se, corra. Vem chegando 2011, que seja bem vindo. E por favor livrai-nos do mal. Na próxima estação os chineses vendem de tudo a preços módicos. Aproveite a dica e boa viagem.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Venha

Se voce soubesse desse céu acima, desse mar ao lado, do ar fresco da manhã, você viria mais cedo, chegaria a tempo do sol se por. Compreenda que a vida é caminhada, correr é um exercício, sofisticado ou infantil,  só depende do ponto de vista. Para a gente que trabalha duro a semana toda, correr de quem, correr para quê? Já os pequenos não se interrogam, só correm, eles e os animais, felizes em viver apenas. Se voce soubesse querida, como é bom viver na brisa, no conforto da casa paterna, debaixo das asas dos nossos anjos, viria mais cedo para casa. Temos abraços e aconchego e risadas. Temos conversa mole, uma prosa adulta e retalhos de poesia. Venha logo, venha que esse dia lindo explode de contentamento.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Búzios

Entrou no apartamento com um medo danado desses boicotes desumanos, quer trabalhar e não deixam, quer viver e não deixam droga, ser rica e não precisar trabalhar, tive que me virar, me sustentar, meu pai um triste, minha mãe uma coitada eu saí de casa bem cedo, determinada saí e fui pra rua comi o pão lá do diabo agora sobrevivo se não me confiscam tudo, sobrevivo até com prazer. O apartamento é muito pequeno, um quartinho e a salinha com uma cozinha acoplada, nem área de serviço, imagine máquina de lavar, nada disso, eu e Mariana que joga búzios na praça, ela consegue um bom dinheiro e dividimos as despesas, quase nada, vivemos para sobreviver, quer ler minha mão e jogar-me os búzios, não quero saber de nada, não tenho sorte nenhuma, não quero ler minha sorte, já a conheço bem. Ela me olha como se soubesse, leu minhas cartas à revelia e olha para mim como quem sabe de tudo, nem ligo pra isso, mas aquele olhar estranho me intimida, daí prefiro não encontrar com ela; se entra eu saio se sai eu entro, ela de elevador e eu pelas escadas, assim conversamos por post it, pregamos num pregador para que não saia voando e deixamos sobre a mesa...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Biscoitos

Nesta época do ano a agitação é geral e não há como escapar de compromissos, festas e compras.
Nas cidades maiores onde o caos no trânsito é diário, dezembro é terrível.
Sobra para quem tem calma ou  absoluta falta do que fazer de  importante e por isso não se estressa muito, reparar no que acontece nas ruas.
Aqui no Rio é batata! Quando é o inferno ou próximo disso, de longe avistamos os vendedores de biscoito Globo! Pode acreditar, relaxe porque vai demorar...

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Pesadelo

Acordou gelada, tremia  e o coração espancava seu peito. Ouvia as batidas dentro da cabeça, estava molhada de suor. Sentou-se, levantou o travesseiro e tentou se acalmar. Era sempre assim. Quando o dia a dia importunava demais, quando a vida complicava, lá vinha o pesadelo. Muitas vezes antevia a noite e se esforçava para não dormir. Cansada, caía no sono pela madrugada e lá estava acordando do inferno. Porque para ela, que todos os dias usa o elevador em seu prédio e depois outro na escola, aquele sonho é um mistério. Será que procuro terapia, leu sobre interpretação de sonhos, arriscou um palpite. Uma cartomante lhe disse que seria feliz, viveria para ajudar muitas pessoas. Cartomante... eu estou desesperada mesmo, que diabo. Para o padre, confessou pecados que não tinha e chorou quando ele disse que bastava se arrepender e rezar a Ave Maria.
Ela rezou... e rezava antes de dormir – por favor livre-me deste sonho. Se passar uma semana sem acordar, estarei bem. Mas sonhava de novo.
Dentro do pesadelo desce pelo elevador e o espaço é cada vez mais apertado, no térreo é só um caixote e ela espremida lá dentro, agachava-se e entrava num labirinto preto, sentia as baratas até ver uma fresta de luz por onde podia escapar. Acordava sempre antes de sair completamente para a luz...

domingo, 5 de dezembro de 2010

Amoela


Mãe me ajuda a fazer a lição não tenho tempo peça ao seu irmão ele não tem tempo tem que treinar qual é a dúvida não é dúvida é lição cinco exercícios difíceis, preguiça exercício de matemática depois do trabalho, coça a cabeça suspira e senta, vamos lá concentra, leia o enunciado e ele lê entendeu não lê mais uma vez com atenção cada frase e pensa no que quer dizer, ele relê e então, tá apoia o rosto nas costas das mãos e escreve os números hesita escreve mais um pouco, apaga olha para a mãe que olha fixamente para um ponto no tapete, mãe você não está me ajudando, anda menino, escreve, o quê mãe eu não sei, desta vez ela pega na mão mesmo, lê o texto compreende explica e ajuda o filho a concluir a lição, saem os dois felizes da mesa ele para o elevador e ela para o chuveiro. No parquinho Dudu espera por ele que traz nas mãos os exercícios. Demorou, ela estava cansada não é um computador, onde ela aprendeu, não sei, como não, ri, pega a folha e entrega uma folha com a lição de português, conversam e combinam para amanhã o videogame que não deu tempo. Sobe e vai para o quarto mexer no computador, joga e joga  sabe que o mundo que entra por aquela janela não tem as dimensões próprias das nossas três, são virtuais e infindáveis como números primos, ih o Miguel, oi desculpa estava fazendo lição, mamãe quer combinar com a sua de comemorar seu aniversário lá no Piparote, vamos? Mas lá só tem sorvete não, tem cachorro quente e tem fritas e tem ah você sabe e o bolo minha mãe é que quer levar. Oba, fala com a tia Martha que eu "amoela",ta?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

retorno

A manha era clara e azul. Desceu pela escada pegou o carro e já sumia. Dirigiu por três horas, uma rápida pausa e voltou para a estrada, outras duas horas. A orquídea ficou no chão do lado do passageiro e ela ia sozinha. Ligou o rádio e abriu o vidro que o vento era um potente despertador. Droga,  tenho que me atrasar e correr atrás. Perdeu-se e um desvio a levava para Sertãozinho, como faço para o retorno, sempre estão a alguns metros de quando se precisa deles, tenho que ir lá na frente  nada de inventar  uma saída, que perigo veja o que aquele moço está fazendo deve ter errado também talvez tenha que ir até Sertãozinho e dar a volta na praça central, para pegar de novo a estrada. Suspirou com preguiça e aflição, às vezes o dia é caótico  e acaba em nada, o dia é só um retorno mal feito, quanta perda de tempo. Perguntou ao moleque que vendia laranjas, como faço para voltar, daqui a uns três quilômetros dona, pode levar umas laranjas pra me ajudar, ela agradeceu e levou seis laranjas que colocou ao lado do vaso de orquídea e as cores se confundiam, a casca e a flor e no retorno ao fazer a curva viu seu vaso entornar e a orquídea empalideceu um pouco, lembrou-se de quando levara o gato para fazer exames; de preguiça de esperar colocou logo o bicho na caixa de transporte, ele e seu pelo branquíssimo, a meio caminho olhou para o gato que se lambia e viu que sangrava mas o que acontece, só via sangue,  com a mão no volante e os olhos contrariados no gato, perdeu a direção e chocou-se com um Fiat estacionado, quando se deu conta ela e o gato estavam de cabeça para baixo, mas fora o susto ela e o gato estavam bem conforme disse para a mãe apenas a grana ia ficar ainda mais curta porque o Fiat ficou em frangalhos, mas ela e o gato estavam muito bem. Quando fez o retorno, era um retorno à rotina normal, tratou de se concentrar antes de fazer mais burrada e perder mais uma hora, quando chegou a casa da mãe já passava do meio dia e a mãe aflita o que houve e ela, o gato sangrou, ah não foi o retorno que peguei errado, perdi um pouco de tempo, vai dar tudo certo, saímos daqui a pouco vamos direto pro hospital... 

Morrer


Outro dia vi um gatinho agonizando, era velhinho, velhinho e estava tão doente. Fiquei ali do lado, confortando e acudindo, mas acho que nem ouvia mais. Prestei atenção em sua respiração, cada vez menos, cada vez mais fundo. Contava o tempo entre uma e outra respiração; penso que é como nascer ao contrário, contamos as contrações da mãe para o nascimento da criança. Quando mais próximas mais perto da hora. Talvez morrer não seja nada além de um trabalho de parto.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Visões

Estava muito doente, no hospital. Tomava uma  miscelânea de medicamentos pesados, fora os outros da minha rotina. Lá pelas tantas, estava sozinha no quarto e escurecia. Fazia nebulização e no meio da fumaça reparei em umas imagens peculiares. Eram flores, muitas flores que eu via na parede a minha frente e que lentamente se aproximavam, tocavam meu nariz e explodiam. De novo na parede um mosaico,  egípicios, que se aproximavam num crescendo até me fazerem cócegas. Resolvi relaxar e aproveitar o "filme". As imagens se multiplicavam e se transformavam coloridas entre o verde e o vermelho para se desmancharem sobre a cama numa sequência infinita. Achei lindo. Curti demais e mesmo depois da inalação terminada as imagens continuaram por um tempo e eu em êxtase!
Comentei com a técnica de enfermagem que a inalação tinha feito um bem enorme. Ela disse que ótimo então vamos continuar. Fiquei esperando até a próxima que coincidiu justamente com  a hora em que fui tomar banho. Oito horas depois fui até a porta do quarto que abri e ficava esperando passar alguém para reclamar desejosa: Cadê meu berotec?
Fiz muitas outras inalações sempre ótimas, reconfortantes. Mas as imagens que eu queria tanto rever, nunca mais aconteceram.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mendigo

O mendigo, coitado vive na esquina dorme ali e come os restos da padaria, dizem uns que era casado e feliz até que sua mulher largou dele por outro; começou a beber, era trabalhador, era brasileiro, trabalhador, lá da Bahia veio morar em São Paulo, era servente, depois ajudante de pedreiro e aprendeu a reformar sofás, então trabalhava muito e era tão feliz, naquele dia  bebeu até o dia seguinte, invernou, há quem diga que a mulher largou dele por que já bebia demais ela não suportou, que ela fugiu com outro todos concordam, se foi bebida antes ou depois é que ninguém sabe, também ninguém atenta para a vida dos pobres todos querem que o serviço seja feito, se atrasar é que vão reclamar e as vezes reclamar tem conseqüências terríveis, porque pode detonar um inferno, contam que o rapaz  invernou e a mulher teve que trabalhar para terminar o serviço que não ficou muito bem feito ela não tinha as manhas da coisa, reclamaram do atraso, depois do serviço porco, depois da falta de alguém para atender, depois do bêbado transfigurado que ficava escornado lá num canto cheirando a vômito. Aquela dona tinha encomendado a reforma do sofá assim do nada, era um bom serviço, bem pago mas tinha que ficar perfeito e ele não conseguiu, a dona queria que entregassem em sua casa, ele perguntou se tinha elevador e tinha, então prometeu levar no sábado quando concluísse o acabamento; sua mulher nada sabia, esperava que fossem buscar aquela marmota e nada,  precisava do dinheiro; se bem que não tinham filhos poderiam se virar de qualquer forma eles viviam bem desde os tempos de Bahia que ela gostava dele, mas agora nem me fale, nem me fale, que vou embora daqui e largo tudo vou largar tudo e deixar este frouxo as traças, em seu vomito fedido ele era bom mas sempre teve uma queda, por mim e pelo gim, qualquer coisa, no final, beber a torto e a direita, bebia até perfume quando não podia beber outra coisa o álcool consumiu seu fígado destruiu suas verdades e ele esqueceu que pode-se ser feliz, ou não só depende do sujeito. A dona veio fula perguntar pelo sofá, falava com um sotaque esquisito, francês não era, japonês, é japonês ou chinês, ela era nipônica demais e estava pisando nas tamancas furiosas, estava  brava pra caramba; então largou tudo lá e foi-se embora com o porteiro do prédio, em frente que já queria largar aquele serviço porque nunca gostara de elevadores e  havia 4 que sempre encrencavam, ele queria voltar para a Bahia e plantar coco, ela achou perfeito e foram, tudo ficou abandonado,  estopa e panos , frangalhos de pano, a maquina de costura numa solidão de dar dó, a lâmpada esquecida acesa e assim ficou até que acabou seu tempo de vida útil e o mendigo babado ia ser preso, porque recebeu adiantado pela reforma do sofá,  desistiu, desistiu completamente e passou a viver na esquina foi despejado do pequeno porão onde trabalhou tanto. Nunca mais seria baiano de novo, nunca mais brasileiro, nunca mais humano, era um bicho, um bicho acuado e fedorento, deixem-me deixem-me , todo mundo conhecia, passavam por ali e davam comida ele comia, porque não, comia e depois dormia e acordava e ia beber, comprava pinga e misturava com limão estava acabado; até que parou de respirar foi visto frio, gelado e morto, acabou-se.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Amalgama

Tem nervo, está vivo, é mesmo, mas nem dói, ainda bem tá longe da raiz,  põe amálgama, não existe  faz tempo  só coroa, algo baratinho tem, o mais baratinho é a coroa. Puxa, então arranca, imagina um dente tão bom, mas nem uso, usa sim, não uso, não mastigo deste lado, mastiga sim senão não tinha quebrado, foi o fio, que fio, o dental, vou deixar por último,  mas e se doer, se doer passamos na frente, quero arrancar, eu não arranco, quero por mercúrio, está fora da lei, mas é barato, eu não faço amálgama, vou pensar volto na semana que vem, está bem.
Não voltou, morreu sem amálgama, sem coroa, sem nada.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Meio dia


Manhã de tráfego intenso neste cubículo  infernal agora, as onze horas, outros virão para o almoço e outros cheiros mornos e molhados entrarão nas sacolas, misturas de sabores de cada andar onde comentam a novela e o tempo e também impregnam de miasmas intestinais um espaço destinado ao publico popular. A velha que finge, entra cigarro aceso e faz questão de dizer que não sabe que não pode fumar no elevador que é publico então pode, mas é fechado, mas abre, e o cheiro barato do pito e seu cheiro de barata arrependida, pequena bruxa desencantada dos contos, ela sabe que será julgada bem depois da inquisição. Para ela isso é o que importa porque criar impasses está nas veias desde a adolescência hippie pop agora tão velha como as tarântulas em suas teias, tece qualquer coisa que a distraia, para rir depois sozinha, das proezas do dia e já pensa no próximo ciclo que de desconstruções sobrevive. No Zênite, franze o nariz em seu esgar risonho, brilham os olhos dessa formosura em decadência. O distraído agoniza, desespera, pena. E ela nem desconfia que incomoda mais do que planejara porque será eterna na memória indestrutível do aço inox.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

pedaço especial

Acordou com dor de garganta, dor de garganta, olhou no espelho colocou a língua bem pra fora, nada enxergou, buscou a lanterna e olhou de novo. Nada. Deu de ombros passou batom e saiu, apertou o botão do terceiro andar e Aninha não estava pronta.
Depois saíram as duas rindo à beça, não sei de quê. As duas iam ao casamento à noite, e sapatos eram o que faltava. Mas que sapatos, difícil acertar, sapatos de salto, brilhante, sandálias, da cor do vestido, da cor da pele, olhar e ver o que mais combina, nunca é o mais prático. Depois das compras  ela foi ao pronto socorro, cismou com a garganta, doía doía doía: examinaram - mas não é nada, é vírus! - uma dor de lascar - tome essa injeção e observe, se piorar volte. Voltou, não foi ao casamento, desistiu. Chegou ao hospital para a  internação, era grave era urgente, ficou a tomar antibióticos, antiinflamatórios e outros órios e óticos que curam ites; às vezes perdemos casamentos e festas ótimas, vamos passear no hospital, é tão divertido, gente doente, caras boas, tudo muito sortido e sem caráter a não ser o sentimento de não estar  bem ; procuramos quem entende do assunto, um mecânico para um carro, um vendedor para um sapato e ela o hospital como todos ali, gente nova a todo momento e os atendidos encaminhados, para casa, e depois voltar, ou o casamento, e depois casar, ou sair pelos fundos.
Sei que ela vem, tenho certeza que vem talvez vá só à recepção muita gente faz assim, vamos dançar a macarena, ou a rumba;  mas como posso ir assim, agora que me internaram, puxa nem sabia que estava tão mal existe tanto que a gente nem desconfia, mas ficarei bem e farei uma surpresa especial a eles, ela vai compreender ainda que fique triste porque não fui; amigas de infância, desde que a conheci e perguntei de que era feito seu cabelo vermelho e ela riu, deu um sorisão para mim e me abraçou vamos logo para a gangorra, de assentos vermelhos e cordas, nossos sapatinhos de verniz vermelho lá na frente e lá atrás, brincávamos de roda, de pique e de casal e logo no casamento eu, logo no casamento dela, quando senti não dava, e ela vinha correndo para descer ao porão e desencantar umas pedras e tralhas estranhas a que dávamos sentido exótico e especial, depois as bruxarias e compromissos de sangue; no casamento ou no hospital.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Outro pedacinho...


Aperta o botão do terceiro andar, olha-se no espelho, está mais redonda e radiante. Faz 2 meses que não aparece, a academia é a mesma, a música, a recepcionista, tudo. Entrou e a receberam com alegria, está sumiiiida! É que estou grávida, estou grávida de 4 meses, por enquanto não posso fazer exercícios; conte como foi isso! Foi assim estava namorando e a camisinha, era tabelinha e camisinha e aconteceu, menstruava e rasgou.    Então já não estava mais namorando e pensei, porque não, se posso sustentar minha criança, posso ter meu bebê, tenho independência, trabalho e sou feliz, independo, posso; mas o namorado voltou atrás, quis ficar, quis voltar, então disse a ele, contou a novidade, depois de terem reatado ela contou a novidade e - você é quem sabe eu sei de mim e do meu filho, sinto muito mas é isso, é a vida, é a vidinha e eu vou em frente. Estão morando juntos e ela está alegre, serena e não pode fazer exercícios pesados por enquanto. Ela sente falta e exibe a nova tatuagem – oath - e o cabelo tem pontas roxas como sempre. A casa de festas está bombando, seus peitos estão bombando e ela quer mais é que o mundo se dobre aos seus pés. Prefere uma menina, para ensinar a ela sua dança. Eu que ouvia tudo, curiosa, imaginei a cena – mãe e filha sincronizadas na pole dance da vida, sensuais, fortes e vigorosas, no ritmo naturalmente cadenciado de quem tem postura e determinação. Quando foi embora eu queria dançar.

domingo, 14 de novembro de 2010

para degustar...


Devíamos poder decretar - quero morrer hoje- como se fosse comprar no mercado um quilo de carne para churrasco amanhã ao meio dia. Deixo pago, tudo organizado, mande entregar.
Assim, sabendo quando e como, a morte deixaria de ser um mito, seria casual como uma limonada. Adoce para mim, gosto de açúcar, nem sou diabético. Melhor com gelo e lascas de limão, para alegrar os olhos e aguçar os sentidos, quero minha limonada com limão galego, nada de limão da china. Faz favor de jogar o bagaço e as cascas no lixo especial que será queimado e transformado em pó. Assim passarei daqui para ali sem mistérios, com a tranqüilidade de quem já viu demais e se despede sem mágoas. Cansei de ouvir o estalar do elevador. Tarde da noite e a meninada chega sem escrúpulos, os pais já dormem e a moçada mora para sempre na casa dos pais e o barulho do elevador, que traz e leva as risadas histéricas das meninas bêbadas e dos rapazes malemolentes, querem viver assim na flauta e depois vão querer morrer com dignidade, aquela que não tem e nem vão ter a tempo. No meu tempo de moço era 18 e cai fora vai ganhar a vida, quem ficar era o bobo, logo namorada, noiva mulher, vai se sustentar vai trabalhar e traga algum dinheiro para a mãe, para o pai, depois pode fazer seu ninho, crie filhos que te turvarão os olhos quando adoecer, que te negarão o colo quando faltar, que cobrarão com juros os erros que nem sabia que fez, pobres; querem viver e a morte vem a galope, quem acha que demora está enganado, eu que me demoro demais e fico noite a  noite na espera de que a morte me leve no sono não quero saber que fui, porque no começo nem pensamos, viver é complicado, o tempo vai passando e lá pelas tantas vem a dúvida e a certeza – vou morrer, um dia vou morrer, estou morrendo faz tempo e nem sabia, vou morrer e não sei quando, será hoje? Não, não foi hoje, será agora, não, nada ainda, vou ter que esperar; tenho tantos anos nem sei quantos, estou sem porque, estou cansado e sem porque, preciso que ela venha mas tenho medo, tenho coragem mas e o medo, daquilo que desconheço, do outro ser que serei ou não por isso um monte de pó, que não quero a alma perdida que minha alma vire pó também; é preciso pesar o corpo e depois o pó, temo que o pó seja ligeiramente mais pesado que o corpo seco por causa da alma, umas graminhas de nada a alma deve pesar, talvez fique aprisionada no pó e fuja pelo vento quando espalhamos, tenho medo de ser espalhado e me debater àtoa pelos telhados e casas, virar o pó que trazem da rua e limpam no tapete -bem vindo- antes de entrarem no elevador, quando  jogaram fora os cinzeiros dos prédios muitas almas devem ter sido expulsas daqueles caixoezinhos de metal e sem tampa, talvez se as transformaram em x as almas se amalgamaram ao  x;  e presas estão dentro das casas, as almas são os olhos dos objetos, principalmente aqueles de metal reciclado, ficam lá olham e olham e a gente da casa pressente alguém está ouvindo, parece que nos pegam no pulo, pare com isso está me machucando e vai olhando desconfiada pelos cantos, os objetos de metal tão frios, sua essência são as alminhas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Gargalhada

Há muito tempo, vendi uma parte do meu sorriso, para uma mulher infeliz. Era uma espécie de cigana; sempre tão espertos estes ciganos...
Perdi um pouco da graça e olho no espelho de relance apenas.
Muitas pessoas me dizem - mas você não mudou nada depois que ficou meia-boca.
Acho que fazia uma ideia  um tanto insuflada da minha imagem, eu me achava bonita....
Não é como doar um rim... é como vender a alma, a você sabe quem.
Quando meu bem me diz que sou sempre bonitinha, quero mostrar meu lado risonho, gosto quando reparam. Ele também insiste em me dizer que sou bonitinha de qualquer jeito. É que ele gosta muito de mim, esta é a única explicação.
Um dia desses, vou acabar acreditando.
E por fim vou dar uma grande risada, uma gargalhada, daquelas de bebê com cócegas.

Dilema

Entre a cruz e a espada, eu prefiro a espada.
A cruz concentra o que a espada aponta.
Cruz é para míope e mais perto preciso estar. 
No espaço da espada estão as estrelas, você inclusive. 
A cruz diz aqui, a espada questiona, onde.
Uma cruz termina o que a espada anuncia.
Sei la, às vezes e se eu pudesse, comecaria tudo outra vez.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Mr Hyde

Tenho uma natureza tão ambivalente que não me reconheço.
Vou em ondas, em pequenas ondas ou gigantescos tsunamis.
Assim: Tenho um ciclo longo de uma média de 8 anos, que passo da introspecção e certo recolhimento para   as multidões, pessoas ao longe e ao lado, pessoas por toda parte.
Atualmente, quando prefiro a solidão e o solilóquio, lembro-me de que faz uns anos estava cursando uma segunda faculdade, envolvida completamente com animais e gente em sua maioria muito mais jovem que eu. E estive tão feliz!
Mas procuro aqui dentro; e procuro...  Como pude?
Então me lembro que no tempo da faculdade, ao sair de casa e atravessar a sala com pressa, balançava a cabeça para aquela que eu tinha sido, quando passava os dias a ler e a ouvir música e estava em paz.
Foi quando li James Joyce, Proust e Dante, numa viagem literalmente homérica pelos clássicos. Como foi bom.
E antes disso houve uma revolução pictórica, antes ainda invernei entre as linhas e lãs da tapeçaria,  intercaladas com anos de intenso exercício físico  ou com as artimanhas da medicina crua.
Mas também fluo em pequenas ondas, no dia a dia, quando passo do medo absurdo de avião ao prazer de degustar um chocolate artesanal em pleno vôo.
Há dias em que não quero ver nem meu cachorro e outros em que procuro uma parada barulhenta, muita confusão e gargalhadas.
Há as noites etílicas, às vezes Carmenére, outras Prosseco, ou ainda o rum que o Edmur prepara à noitinha.
E os churrascos cariocas e cheios de sotaque, temperados à cerveja e sal. 
Ia me esquecendo dos dias coca-cola e dos dias-chá!
E quando amanheço prostrada, infeliz pela humanidade e nada me faz aprumar senão o tempo? Quando nem acredito que minhas pernas  torneadas foram construídas com muita malhação?
Penso em mim como uma sombra amorfa e o espelho devolve uma criatura magra e com músculos bem definidos.
Por falar em criatura estou ouvindo compulsivamente a trilha do musical  Dr. Jekyll e Mr. Hyde e sou eu quem está ali, indo e vindo numa espiral inconstante.
Helena, Miguel e eu sempre fomos apaixonados pelos musicais e compartilhamos boas recordações.
Helena nutre esta minha paixão com cada musical que ela descobre e devora.
Ah, O Fantasma da Ópera, Next to Normal, A Bela e a Fera, Chicago...
Os meus preferidos são aqueles em que a dualidade se faz patente e intensa.
A não ser é claro que eu esteja precisando dos "sons do silêncio".
Aí, o melhor a fazer é sossegar e esperar para ver em que direção aponta esta biruta!

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Viagens

Vai amigo, fazer amigos.
Mas não se afaste muito da minha memória, que dôo de saudade, quero lembranças e carinho.
Vai, que fiquei o dia todo esperando, que sua viagem agendada tivesse início, que suas malas estivessem prontas e seu transporte batesse à porta.
Ainda é cedo para ir, mas reconheço sua urgência e capitulo.
Como é penoso despedir e enfrentar a volta para casa.
Sei que é natural este ir e vir, quantas vezes viajei, incontáveis, por motivos tão diversos e para lugares tão estrangeiros.
E sempre que volto frequento o limbo das estações de transição.
Mas quando é hora de sumir uns tempos, criar asas e seguir, sinto a ebulição das águas termais interiores.
Você, pequenino, talvez nem soubesse dessa sua viagem tão emergencial e definitiva.
Como não pôde ser um saltimbanco, apenas acompanhou agradecido quem lhe quis tanto bem; e se reclamou às vezes compreendo que era a força de sua natureza selvagem.
Você não será esquecido. A terra, tão materna, recolherá seu filho, como a todos os outros.
Frutos da terra que somos, ambos retornaremos renovados e em algum momento cruzaremos de novo nosso olhar. 
 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Temperos

Queria  um pouco de açúcar para temperar este dia tristonho e lerdo.
Quem sabe uma chuva doce transformasse a rua vazia em uma multidão, ainda que de formigas e suas sombras.
Talvez eu pudesse enfim beber da água da chuva sem mistérios ou receios.
(As palavras fluem mas eu não.)
Estou triste mesmo e nem um bolo de chocolate resolverá.
Este dia salgado, cheirando a bife, começou e vai acabar assim.
Temperado demais, prolongado demais, preguiçoso.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Faz de contas

Ontem, por que você demorou, fiz umas contas:
Somei os agrados, descontei desagrados, multipliquei os carinhos e reparti as queixas em suaves prestações mensais de um dígito.
Nesta minha aritmética, visualizei o poder dos pares, a ganância dos primos e a suave relutância dos ímpares.
Fiz contas ao cair da noite, que passou por mim dolorida e saudosa de você.
Porque nos fins de tarde, sofro por esperar. Quero sua companhia, suas notícias, as custosas discussões por seu espaço; e eu aqui fazendo as contas, descobri que temos um saldo positivo e não importa mais  o vermelho, que é mais psicológico que as outras contas. O vermelho é de sangrar, é de diminuir, o vermelho é perda.
Mas nós já passamos desta fase.
Estamos começando a receber os juros e as juras do nosso investimento.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Frigidaire

Tenho uma tendência a me desfazer sem traumas de objetos que perderam a função. Entretanto alguns ficaram grudados, um imprint, uma tatuagem nos sentidos. Marcaram época, são de outra década e não quero me desfazer deles: Uma geladeira side by side Frigidaire, uma das primeiras que chegaram em São Paulo depois que as importações foram liberadas, lembram? Era um mimo, enorme para minha pequena cozinha, que nem tinha um ponto de água para que o dispenser funcionasse. Mas a previsão era de que nossa casa própria ficasse pronta em um ano e lá teríamos espaço e ponto de água para aquela beldade.  Com a reviravolta da nossa vida, viemos para o Rio e a geladeira nos acompanhou, mas o nicho para a geladeira na casa que alugamos era pequeno e ela ficou lá na área de serviço, guardando os congelados. Depois de dez anos mudamos definitivamente e um dos detalhes que mais me empolgou quando vim conhecer a casa era o fato de a proprietária ter uma geladeira side by side exatamente igual a minha, com tudo funcionando.
Quando nos instalamos a geladeira passou a funcionar a todo vapor, mas lá se iam uns 17 anos... As borrachas das caixetas foram trocadas três vezes, sendo que em uma delas a Renata fez o favor de comprá-las para mim e trazê-las em sua bagagem, em geral já bastante generosa. Foi ótimo porque o encaixe era perfeito!
Atualmente ela está um pouco senil e ultrapassada mesmo... Não é frost free, não é ecológica. O motor do dispenser de água parou de funcionar. Não há um único técnico em todo o Rio de Janeiro que possa dar jeito nisso! Ninguém quer por a mão na madame...
Ainda vou pelejar mais um pouco. Afinal, assim como o Felipe - o gato - e a Explorer , essa frigidaire faz parte da história de nossas vidas.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O frango

A mulher pegou o frango, juntou com cuidado as asas sobre o pé esquerdo, expôs o pescocinho pelado, fez um corte profundo e deixou que o sangue escorresse dentro de um prato branco, branco, que já tinha um tanto de vinagre.
Deixou ali, pousada sobre o prato, a criatura exangue e foi atender ao telefone.
Ao voltar, o frango estava de pé, com a cabeça pendendo para um lado e ela, barrigrávida, pôs as mãos na cabeça em um "aimeuDeus" desanimado. Sentou-se tonta também e esperou que a natureza efêmera das coisas terminasse o trabalho. O frango por fim desabou sobre o prato de sangue espirando o vermelho; e um olhar vítreo ainda olhava para ela.  Na bacia de água fervente, escaldou o pobre e começou a depená-lo com zelo e competência. Um cheiro acre se espalhou pela cozinha. Ela sapecava a pele na chama aberta do fogão. Deixou o frango sobre a pia, jogou fora as penas direto no lixo lá da rua, voltou com uma faca afiada, extraiu as vísceras, lavou muito bem a carcaça, destrinchou, refogou e cozinhou até que o ambiente voltasse a ter um cheiro bom e convidativo. Por fim colocou o sangue no molho do refogado e esperou que ficasse consistente.
Na hora do almoço, a família em festa, não pode comer.
E foi a última vez que preparou um frango ao molho pardo.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Paisagens

Sou mineira também mas não preciso de resgate.
Nasci em Minas Gerais, onde boa parte do horizonte é finito e próximo.
Da última vez que estive lá fotografei a incrível mudança de relevo durante a viagem de 5 horas. Ao sair do Rio - onde o mar se prolonga e se acaba no céu - depois da primeira hora, começamos a subir e subir, os tímpanos estonteados e entramos nas nuvens. Faz um frio estranho. As montanhas vão se entrelaçando e fogem umas dentro das outras, inibidas, quase envergonhadas de sua beleza plena e cobrem-se com a transparência diáfana da neblina. Em alguns pontos, vemos um vale profundo e às vezes um fio de água que esboça um desenho distraído, como quem fala ao telefone. Na medida em que descemos a serra do outro lado, depois de Petrópolis, o relevo se torna menos ambicioso, mas mantém para sempre e progressivamente, seu destino ondulado. Uma estrada cheia de curvas e avisos de perigo, deixa apreensivo qualquer um que não esteja habituado. Mas a gente se distrai quando aparecem os trens, desde aqueles com incontáveis vagões carregados de minérios, enormes,  que serpenteam, aparecem e desaparecem para logo ressurgirem, na outra curva; até as locomotivas  meio abandonadas numa estação imaginária onde aguardam sua vez.
As cidades pelo caminho também são onduladas - algumas me lembram as favelas cariocas em maiores proporções. As casas são construídas nos morros e vê-se a diversificação de cores e formas. Olhamos para as casas e elas, como os abismos, nos olham de volta.
Quando mais próximo do destino, mais o relevo se encrespa, mas tudo vai acontecendo aos poucos como numa fábula onde tudo começa no era uma vez da Serra dos Órgãos até o final feliz de um Belo Horizonte.




quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A história dos mineiros

Do pó brotaram os segredos, que na natureza se tornaram homens.
Depois veio a vida que os carregou  de roldão.
O deserto, o gelo, o cobre e o ouro... todos conspiravam.
O trabalho, a família, sucessos... os jogos de azar se sucederam.
Vencidos, os filhos pródigos voltaram à terra mãe, em busca de alimento.
Rasparam suas entranhas, machucaram seus alicerces.
A terra frouxa, exaurida, desabou.
Ali ficaram seus meninos e a terra achava que os protegia. Porque se voltaram, de dentro não deveriam mais sair, sempre foi assim.
Mas a terra, esta terra, suave mãe que tudo releva, deixou-se abrir, dilacerar.
Por um fio de voz e depois pelo canal, deram-se os partos.
Alguns homens surgiram e brilharam exultantes, movidos pela fé que transforma.
Outros, extraídos a fórceps, depois do longo trabalho e densa agonia, reanimaram-se.
E a terra, que tudo perdoa e apaga, perdoou-os.


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Mergulho

Hoje as ondas, as ondas, as ondas bateram com força na areia, na areia, na areia.
Um milk shaque de peixe se formou na praia e ninguém se aproximava.
Hoje não havia quem vendesse um picolé e as sombras não se fizeram; um dia sem contrastes a não ser pelo mar, pelo mar, pelo mar.
Um vento escuro e barulhento fustigou palmeiras e passarinhos.
Tontos, os pássaros. Estonteadas as palmeiras.
Hoje foi o dia em que vi a vida prender a respiração e num átimo se atirar ao mar.

domingo, 10 de outubro de 2010

Refém

Hoje amanheci antes do dia. Uma pressa de vida, uma urgência.
Conferi as portas da geladeira, verifiquei com cuidado se todas as lâmpadas estavam apagadas. Depois dei uma volta no jardim, retirei folhas mortas, flores murchas...
Ainda sinto o coração agitado, inquietudes...
Ontem acabei de ler o livro de Ingrid Betancourt e sua saga como refém das FARC. Acho que com tanta sede e tanta fé ela é a sobrevivente possível, das que ficam para contar.
Eu, refém de mim mesma, as vezes me maltrato e perco a fé.
Presa às correntes que me imponho, peço autorização para gritar quando o caos se instala.
Meu grito é rouco, sinal de muitos dias sem falar, onde estão meus companheiros?
Calculo que, se caminhasse pelas matas e encostas e margens de rios, ao sentir o cheiro pungente do verde decomposto, talvez me libertasse desta vocação para mártir.
Porque reconheço que vivo amparada pelas redes invisíveis dos que me querem bem, acredito que jamais me deixarão e assim mato minha fome de amor, esta carência em saco sem fundo.
Escondo meus tesouros nas dobras das roupas e finjo que não os tenho. Desta forma tornam-se mais valiosos e ao reencontrá-los fico repleta de júbilo.
Meu pobre espírito, sôfrego e náufrago cala-se diante da grandeza e coragem das Ingrids que acompanho.
E eu, com minha vida tão boa, volto para o calor e a penumbra do quarto de dormir.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Enduro

"- Mamãe, mamãe, olha o cavalinho, mamãe!"
Desde muito nova, sua paixão sempre foram os cavalos. Gostava de vê-los passar, ainda que fosse puxando carroças nas ruas de paralelepípedos ou vistos de longe, soltos no pasto.
Olhinhos brilhantes, rosto afogueado, um carrossel dentro do peito, lá ia ela montar os cavalitos de madeira do parque ou os pangarés mansinhos dos hotéis-fazenda.
Ninguém da família tivera ainda este interesse por equinos;  ela perguntava tudo, desenhava e coloria e espetava os limões com palitos em sua fazendinha FAZDECONTA.
Um dia, empolgada, foi aprender a montar de verdade. Ainda adolescente, as aulas de equitação eram seu foco. Aprendia, aprendia, ela jamais teve medo.
Conheceu muitas pessoas apaixonadas assim e era plena quando teve seu próprio cavalo e treinava para competir.
Mas o resto da vida pediu urgência e exclusividade; vendeu e deixou de lado o prazer de cavalgar e ser parte do conjunto.
Foi nesta época que a conheci e a vi chorar de saudade e desejo de montar. 
Aprendi a andar a cavalo com uns 11 anos mas sempre fui medrosa e o bicho nunca fazia o que eu queria, então o deixava ir, seguir os companheiros na picada. Jamais consegui um bom galope, eles, displicentes  e sem rédeas firmes, somente trotavam sacudido.
Quando aprendi a andar de motocicleta o professor dizia: -"Moto não é cavalo, não tem vida própria, ela só responde ao seu toque. Confesso que às vezes, a moto encabritava sobre a calçada e eu juro que era viva!
Faz uns anos convidei minha amiga para pedalar na praia. -" Ih, não sei andar de bicicleta." 
Ela passou direto do cavalinho de cabo de vassoura - quem não teve um?- para os 500 kg de alazão.
Recentemente, deu a volta por cima, saltou mais alguns obstáculos. Recomeçou a treinar, se embrenhou pelas trilhas dos cavalos e comprou todinha para si uma potranca linda. Que belo conjunto!
Desta vez foi de alegria e emoção que a vi chorar.
E eu que acredito na determinação e auto-confiança dessa moça, também chorei um pouquinho.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Movimento Browniano

Pela manhã escancaro todas as  janelas.
Sem filtros, miasmas noturnos entram e se escondem nas frestas escuras dos quartos e das salas.
Momentos aprisionados se expandem para o jardim, num rodopio.
Navios atracam nas camas, outros apitam felizes em partir para o dia.
O vento, o vento. Não há calma, nem silêncio. Sons fugidios agarram-se aos batentes.
Sou eu quem não tem filtros,  nem mesmo uma tela mosquiteira separa  o dentro do fora. Preciso desse ir e vir browniano, para aquecer e rearranjar os sentidos.
Sei que assim exposta corro riscos, eu sei. Não tenho o corpo fechado como ele...
Mas em plena criação quem pode conter esses fluxos?

domingo, 3 de outubro de 2010

Gatos ainda

Nesta madrugada, tive um sonho.
Acordei cedo e ainda havia os gatos por toda parte. Esgueiravam-se pelas sombras, atrás dos sofás, sobre as mesas. Procurei cada um deles e me lembrava do preto e branco que quando me viu desapareceu. Do outro, este branco e preto que miou aguda e longamente, mas quando fui encontrá-lo também esvaneceu. Um malhado atrás da porta, um engraçado frajolinha, e outros, muitos outros.
Sempre que os via, chamava a atenção da Helena - olha, Helena, que lindo aquele, você vê?
Não, ela não via, apenas piscava lentamente as pálpebras.
Então apareceu o gato marron dourado, no tapete da sala. Desta vez ele me deixou tocá-lo, passei a mão em seu dorso e sentia seu ronronar. Tornei a perguntar a ela: E este Helena, você vê? Ela via. E sentia. Também quis afagar o bichano. E desta vez  fui  eu que esvaneci, morta de pesar de ter sumido de meu próprio sonho tão delicioso e mágico.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Diamante

Quando as vacas estavam magérrimas os meninos perambulavam por ali, sem querer pedir. Mas era tanta a fome que antes de voltarem para sua cidade, um e outro resolveram o problema. Quando estavam a meio caminho o mais velho mostrou um chocolate que havia surrupiado do armazém para dividir com o irmão. O outro caiu na risada e tirou do bolso mais um diamante negro! Que festança!
Depois dormiram saciados até a rodoviária

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Tranças

Conheci uma crocheteira singular. Mãe de três filhos adolescentes, produzia ao máximo entre tricot, crochet e  costura e assim ajudava nas despesas da casa.  A filha do meio, ainda menina quis aprender.  Tecia  infindáveis trancinhas com linha de costura e agulha minúscula. Dona de bons olhos e muita paciência seguia os conselhos da mãe e só suspirava, resignada, quando ouvia: -"Desmancha!"  Para a mãe o trabalho tinha quer ser perfeito. Nada de fileiras tortas ou pontos com tensão diferente. Também era preciso lavar bem as mãos quando fosse trabalhar porque a trama de linha branca deveria estar impecável. Os dois meninos, curiosos e com certa inveja da irmã - "crochet é coisa de menina" - também aprenderam a tecer, o mais velho com mais determinação que o caçula. A irmã ensinou quando eles insistiram e em troca aprendeu a jogar botão.  Ocasionalmente a mãe passava um pito na pequena. "Nossa, porque a linha está preta deste jeito?" É que na calada, o garoto vinha tecer um pouco e depois desmanchava para não dar na vista. Mas dava! Porque nem tinha o cuidado de lavar as mãos, queria mesmo era treinar a trança.
Com o tempo, a mãe compreendeu que todos sabiam usar a agulhazinha.
Um dia, o caçula e a menina começaram uma discussão interminável e entre sopapos e xingamentos acabaram sendo punidos pela mãe de uma maneira insólita: - "Estão os dois de castigo! Cada um pro seu quarto e só saiam de lá quando tiverem feito 5 metros de trancinha!! ". Enquanto eles iam, emburrados, a mãe acrescentou: - "E eu vou medir, hein?"
Bem, para quem não sabe fazer crochet - será que existe alguém? - a trancinha é o ponto básico, tudo começa com ela. Depois é preciso definir o desenho para as próximas carreiras e a trama de tecido vai se formando. 5 metros de trancinha nada significam. É apenas um cordão sem sentido. Eu gosto muito de trabalhos manuais, desde que não tenha que ficar contando pontos e carreiras. Gosto de tecer como escrevo, liberando as palavras como aparecem. Sem prestar atenção ao trabalho, posso divagar por pensamentos vários e viajo.
Desta forma, o brilhante castigo que esta mãe inventara, induzia a meninada a pensar e aprender. Ali quietos e sozinhos, ruminavam suas dissemelhanças.
Dá gosto ver como esses irmãos se entendem. Sua amizade foi cuidadosamente tecida e desmanchada, muitas e muitas vezes e em centenas de metros de trancinha, até a perfeição possível. 

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Um dia.

Hoje às 6h40, ainda boiava entre lençóis e sonhos, quando tocou o interfone, insistentemente. Atendi, trôpega, achando que fosse a Mariana que cuida da arrumação. Tentava recordar o último sonho, que me ocorria aos fiapos, mas alguém no hall falou sobre vazamentos e consertos. Abri a porta para o encanador e o síndico que foram verificar o banheiro da Mariana. A vizinha do andar de baixo reclamara de uma tomada que saía àgua.
O diagnóstico: vamos precisar quebrar tudo. Perguntei sonada e infeliz: -"Agora?"
Não, avisaremos.
Depois que saíram joguei-me na cama para tentar recuperar o sonho e o bom humor. Mas o fiapo de recordações esvanescera. E compreendi que meu dia começara à revelia e que tinha que ir vivê-lo para que o mundo não se acabasse naquela tomada chorona. Comi uns biscoitinhos esfarelentos da padaria e fui trabalhar pela última vez nesta semana, naquela casa.  Todos os funcionários da minha sala serão deslocados para a nova unidade, que fica na rua de cima e que, lá nas alturas, tem um cenário deslumbrante. A não ser pela porção mais à esquerda da vista de quase 180 graus, onde uma favela insiste em florescer colorida e trágica, veem-se floresta, monumentos, mar e lagoa. É de tirar o fôlego. Sei que ali, jamais me sentirei sozinha, basta dar com os olhos no mundo para perceber o aconchego e o balanço da intrincada rede que move a cidade. Entretanto, ainda era manhã quando um vento sudeste veio cobrir de nuvens cinzentas e pesadas meu alento e como um quebra-luz entardeceu mais cedo.
Tratei de trabalhar com afinco e zelo mas sem paixão.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Passatempo

Sem assunto aproximou-se de conversa fiada e deu-lhe um basta!
O larga-mão-desse-trem impediu que os passageiros embarcassem.
A Maria-vai-com-as-outras também foi de ônibus para Santos.
Um gato-pingado atravessou sem pressa a noite e olhou para trás.
Comigo-ninguém-pode tartamudeou seus medos e foi pra janela ver a banda.
Um coelho coxo chegou atrasado e ficou em frente ao teatro, ruminando imprecações.
O rei bisbilhotou com seu olho de vidro as saias da condessa.
A galinha de papo cheio cocoricou seu ovo.
Há muitos anos, às tres horas da tarde eu ouvia o tilintar do sino do leiteiro.
Sempre que estou assim, a ver a vida passar, ainda ouço



quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Johnny Depp

  Ontem encontrei pessoas bonitas. Comemorei e fui alegre, mesmo sem alcool. Comi chocolate sem culpas.

  Hoje fui cortar o cabelo e descobri que Jonhny Deep trabalha no salão! Ele esculpiu meu  cabelo, fez uma grande confusão com os fios: cortou aqui, aparou ali, secou e molhou e secou. Mudava de tesoura e lá vinha ele de novo: plict, plict. Eu olhava pelo espelho  e o vi com expressão severa, fixando com os olhos um pouquinho estrábicos,  sua obra de arte! Foi muito pitoresco e gostei do jeito desarrumado e da assimetria dos fios; assim, combina comigo. Por último ele secou meu  cabelo como se passasse chantilly sobre minha cabeça e fazia um biquinho atrás do cavanhaque e franzia a testa. O máximo! Saí de lá feliz da vida, renovada.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Tintas

Estou com as mãos sujas de tinta. Como é bom! Estou com frio também; um vento intransigente revolve os tapetes e as mantas. Esta combinação de tintas e frio lembra-me as inúmeras noites geladas que passava pintando em São Paulo. Noites inteiras, insone, num frenesi meio suicida, até acabar a pulsão e perceber que estava congelando. Levava uma hora para parar de tremer e ficar aquecida.
Os temas são outros aqui. A natureza é muito mais explícita e as minhas tintas saem amenas, menos impressionantes. As transições são mais elaboradas, as linhas mais suaves, o toque menos àspero. Tenho preferido trabalhar com as tintas a base de água, faz tempo deixei de lado a cera de abelha e o óleo de que gostava tanto.  É que  a natureza terá que digerir essas pinturas tão tóxicas... Mas o cheiro pungente, a companhia das abelhas e o tímido amanhecer daquela cidade deixaram suas marcas.
Atualmente amanheço aquecida e vivo sem pudores.
Bem, deve ter a ver também com a maturidade.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Receita de merengue

Ingredientes:

Morangos fresquinhos lavados e limpos. Ela parte os morangos em pedacinhos e dispõe na tigela.
Chantily - A mãe bate, bate o creme de leite e adiciona algumas colheres de açúcar até que fique cremoso e fofinho.
Suspirinhos delicados  - A mãe coloca uma porção em um saquinho e ela tritura os coitados com vontade. Uma nuvem esfarelada de suspiros completa a receita.
Ela mistura tudo em uma travessa bonita mas a colher é pequena demais. Suja os dedos, desiste de mexer e pede outra colher, maior, lambendo os dedos. A mãe traz um colherão e tudo fica mais fácil.
Ela mexe e mexe e mexe, enquando isso conversa. Que conversa boa e leve! A risada cristalina que emociona.
A mãe tem a ideia de colocar as porções em taças de vinho e ela monta as taças com a mistura delícia.
Enfeita com morango e suspirinho inteiros, deixa cair por cima um fio de leite condensado e fica pronto.
Comem com prazer enquanto trocam confidências.
O fim de semana está só começando.


quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Procrastinação



Sabia que precisava eliminar as pequenas tarefas de imediato. "Nada que vá demorar menos de 15 minutos deve ser deixado para depois", tinha aprendido. Só assim aquelas luzinhas irritantes e o frio no estômago paravam de acontecer. Lembranças físicas...Também os movimentos parasitas, que tomam tanto o tempo da gente e nada valem devem ser eliminados. Aprendera com a irmã, muito mais organizada, que não há motivo para deixar a chave de casa em qualquer lugar, se existe um canto definido para ela. Pronto - coloquei a chave na latinha, levei meu casaco para o quarto, tirei os sapatos no closet. Chegava e ia se desvencilhando dos trabalhinhos. Uma tarefa simples e tão definitiva, não precisa ser desdobrada. Porque os momentos perdidos são para sempre, pensava. O telefone tocava e ela correu até a sala ainda com a meia pendurada no pé esquerdo. Com o fone no ouvido e a meia na outra mão, conversava lustrando distraída, um gatinho de metal. Depois foi tomar um banho mas esquecera a meia perto do telefone. As luzinhas!! E voltou para buscar. Estava ainda treinando mas gostava da ideia de otimizar seu dia. Queria tempo para si, para não fazer nada  e sem sentir o frio da lembrança.
Pendurou a toalha, vestiu uma roupinha de malha-de-ficar-em-casa, preparou um miojo e ligou a TV.
Suspirou ao decidir deixar para lavar a panela do macarrão em outra hora. Ora, ninguém é de ferro.
Acabou dormitando no sofá e quando foi para o quarto, já era o dia seguinte.
Sorriu ao pensar que não deixara para depois um bom e restaurador cochilo.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Jardim


As artes

Ontem experimentei a máquina fotográfica recém adquirida.
Cliquei amigos queridos e jovens, recém-integrados ao mercado e desejei trabalho.
Fui dar uma volta pelo jardim, revisitando velhos temas.
Tenho um prazer enorme em fotografar as sombras, torná-las parte do objeto que as cria. Às vezes elas têm vida própria e se misturam com aquelas de outros objetos ou com a do fotógrafo.
Ao criar novos desenhos transformo a natureza já tão exuberante em um universo multiplicado.
E a cada hora novas figuras se formam com as sombras itinerantes.
De casa, saí por ali, caçando argumentos para criar imagens justapostas. Por exemplo, inventei uma abstração possível para um cano enferrujado, uma parede verde e uma calçada quadriculada de preto e branco. Imaginem.... Ficou lindo.
Creditei à nova máquina tamanho sucesso.
Depois, sem falsa modéstia, concluí que as artes estão no meu sangue e por onde andar lá estarei inventando.  

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Audiolivros

Hoje experimentei audiolivros! Fui caminhar e que alegria ouvir, com meu único e máximo ouvido.
A Librivox promoveu uma reviravolta em meu estado de espírito. Baixei uma série de contos de Artur de Azevedo. Fazem parte da literatura de domínio público, por isso são gratuitos e gravados por voluntários. Ouvi maravilhada e distraída, histórias em um Brasil iniciante, em um Rio de Janeiro ainda capital. Artur de Azevedo sabe contar histórias e adorei os narradores, que são de toda parte. Há cariocas, mineiros, paulistanos e portugueses.
 Corri um pouco na ciclovia para sentir o nível de atenção na audição do texto. Funciona!  Quando cheguei em casa dei-me conta de que nem reparei no mar.
Eu gosto tanto de ler, que jamais dispensarei os livros, o contato com as páginas, as marcações voluntárias ou não. Marco um círculo no número da página que me surpreenda particularmente. E as vezes não posso evitar que uma mancha de chocolate estrague um pouco a lividez do papel.
Senti falta de poder retomar o texto no parágrafo anterior.  E de  anotar com lápis no canto da página.
Mas senti que pode ser a forma de conhecer um autor aproveitando meu horário de exercícios. Quando estiver inquieta demais,  volto para as músicas.
Ouvir histórias estabelece um compasso novo.
E com certeza na próxima vez que for à livraria vou procurar os contos do Artur.
Hoje, em duas horas ficamos íntimos.

domingo, 12 de setembro de 2010

Schrödinger, Heisenberg, Faraday

Era uma vez, em um conto de fadas, um pesquisador que era  professor de faculdade.
No principio era o livro mas o livro era pouco e divagou e divagou.
Assim surgiu a ideia que a pesquisa confirmou ser justa, mas quem era o justo, quem era o deus?
Saiu para caminhar, voltou sem  respostas e tornou ao livro mas não lia, não via, sonhava, antevia.
A princípio era o gato em seguida eram dois ou três, todos dentro da caixa de Schrodinger.
As possibilidades multiplicadas se um não-olho dentro. Se olho também, porque entre os três gatos qualquer combinação é possível. Até uma a mais... se calhar ocorre uma ninhada. Tão incerto quando as partículas de Heisenberg todos em qualquer lugar e em lugar nenhum. Como não vemos as partículas a incerteza é uma certeza.
No começo eram os gatos na gaiola de Faraday.
Lá estarão seguros mesmo que haja cães ferozes ou tempestades de raios. Estarão seguros e visíveis portanto serão exatamente quantos forem e isso é definitivo.
Gatos, cães, partículas, gente.
Com o andar pausado e interrogativo dos jabutis, o professor de física volta às aulas.
Seu destino é incerto e o meu também.
Vamos todos pra gaiola, embrulhada para presente e que os raios todos nos partam e descubram.




sábado, 11 de setembro de 2010

Anjo

Abriu os olhos e ainda estava escuro.
Suspirou e virou-se de lado, daqui à pouco deve amanhecer.
Mas  cada vez que abria os olhos, o escuro zombava dela. É que o futuro zombava dela. Porque tinha que ser assim. No seu mundo tudo ocorria em pulsos. Os minutos se demoravam, se recusavam até que a tensão era grande demais e passava-se um quarto de hora em um átimo.
Percebia as diferenças de ser, sabia que a mancha cinzenta que tinha no braço era a maldade e não se conformava. Sempre que queria ser feliz e via a mancha, o riso cristalino se turvava.
Abriu os olhos e sentiu que era dia. Nunca conseguira abrir os olhos no instante exato do amanhecer.
Mas não tinha importância. Nada tinha importância. E voltou a dormir e sonhar que era anjo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Lana e Luna

Minha energia virtual extinguiu-se.
Não posso mais com  fazendas, cafés e cidades criados por outros e compartilhados.
Sinto falta da minha alma nesses projetos, sou tão criativa, como posso cultivar esse vício cibernético?
O que preciso mesmo é de Lana e Luna.
Reconheço os riscos e as aflições de ter, mas quero tanto ter... o querer se materializa.
Depois de uma noite agitada, entre divagações e sonhos, acordei para acreditar na fantasia, onde se misturam querer e ter.
Quero ter Lana e Luna.
Preciso cuidar, fui moldada para isso, preciso criar e ver florescer.
Vou mostrar  minha felicidade: Olha só o que tenho, veja o que é meu!
As emoções, os carbohidratos, a serotonina, a criação. 
Vejo as pessoas que foram para mim; e não voltaram a ser. Onde estão? Por que, criaturas, se afastaram que não posso tê-las?
Quero Lana e quero Luna.
Depois delas, no universo dos pulsares, haverá a energia definitiva.
E quando estivermos divagando pelo aqui e pelo agora, prometo que vou confirmar minha predileção.
Quero Luna e quero Lana.
Para o meu bem e para o bem delas.
E que a transformação das cores em sombras seja só uma questão de alvorada e entardecer.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Peso pesado

Agora que as chuvas retornaram, volto a ficar apreensiva com as goteiras no quarto, os pingos no travesseiro.
Então me recordo que a varanda já está com a manta impermeabilizante e o contrapiso prontos; e consigo relaxar.
Lembro-me do dia em que compramos as mantas... Elas vem em rolos de um metro de largura por 10 de comprimento e são muito, muito pesadas. Também são complicadas para carregar, mala sem alça, entende? Bem, compramos duas. Para colocar no bagageiro  foi um custo, dois rapazes fazendo uma força danada deixaram que as mantas caíssem dentro - cataplum! Olhei aquilo e pensei: Que fracotes! Faço exercícios todos os dias, pego pesado, isso não vai ser tão difícil assim...
Quando chegamos e abrimos o porta-malas, resolvemos, Miguel e eu, que poderíamos carregá-las, uma de cada vez,  cada um em uma das pontas. Com um enorme esforço, ambos vermelhos e suando, transportamos nossas  pesadas preciosidades para dentro, para o jardim.
Fiquei com medo, fazia tempo que não via o Miguel tão agudamente  cansado, sem fôlego.
Depois de um café, um banho e um tempo descansando, ele comentou:
"- Que coisa pesada, não? Eu tentei abaixar, (com os joelhos um pouco dobrados) para que o peso maior ficasse por minha conta..."
Caí na risada. Preocupada, eu tinha usado o mesmo truque: Também dobrei  os joelhos  para ficar em um nível  mais baixo e minimizar o peso para ele.
Imaginem a cena: Nós dois, dobrados e bufando, um pensando no outro e abaixando cada vez mais. 
Felizmente a distância era curta. Sobrevivemos.
Da próxima vez ... ora, não haverá uma próxima vez!
Nem de mantas e nem de goteiras!

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Quando a morte é banal

Estive assistindo a um filme em que John Travolta é um espião poderoso capaz de "limpar os trilhos" rapidamente e de quebra ensinar a um novato as artes do ofício. Mortos para todo lado. Era para ser divertido, uma distração,  mas lá pelas tantas desliguei do filme e viajei pela banalização da morte. Há filmes assim desde que há filmes e cada vez mais;  há incidentes nas ruas da  cidade,  idênticos a  estas cenas de cinema e há as guerras, os atentados, os acidentes...
Morre-se por tão pouco; a natureza quer avisar: "Tem gente demais aqui, comida de menos, vamos dar um jeito."
Mas para mim, o susto foi a consciência de todas as pessoas que precisaram chorar seus mortos, tantas para tantos... Porque estes "avatares" não desaparecem como no videogame; aliás nem tem outras vidas.
Há um luto partilhado para cada um deles: nasceram, foram queridos, detestados,  fotografados, rasgados, treinados e seduzidos; e todos os outros gerúndios que uma vida pode ter.
Cada um aconteceu,  dia após dia.
Interagiram, cumpriram rituais, chutaram  tampinhas, descobriram as formigas e seus caminhos e seus caminhos.
E há a falta, a falta que fazem por muito tempo depois.
Fico aqui pensando por onde seguir depois dessas  cenas todas de cinema que vivo e vejo viverem.
Resta ir em frente; e decidir às vezes. Ou voltar um pouco. Ou correr sem escrúpulos.
O imprevisível não vai suspender meu tempo. Não mesmo...

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Meu amado Felipe


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Primavera

Hoje, não quero falar de dores, quero falar de amores.
Gosto da serenidade de quem vai, como se ficasse.
Gosto de quem ama sem medidas, sem contornos.
Não quero falar de separação, muito menos de despedida, quero falar de encontros, de saudades de ver e abraçar.
Vontade de ser parente, todo dia dar bom dia, toda noite conversar àtoa.
Se não é possível, vamos jogar pra frente, jogar limpo e consciente, jogar e viver.
E se um dia os sonhos comuns se modificarem,  correremos uma maratona de cotidiano.
Estar próximo do distante é uma questão de alma, uma questão de vida.
Ali na esquina, estarei esperando.
Uma notícia boa,  novidades, ou velhos temas atualizados.
Vamos conferir medidas com a fita métrica e definir objetivos para a próxima estação.
Só assim faz sentido.
Olha só, vem chegando a primavera! 

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Comparações

Já viu como são as árvores? Algumas imploram, outras desfolham e outras ainda desabam. As árvores, tão vivas, a não ser por seu carácter fixo, vivem como vivemos. Às vezes desanimadas, outras sacudidas em convulsões delirantes e outras ainda muito senhoras de si.  Eu me sinto árvore, às vezes. Quieta, muda, vencida, olho para o mundo de um pedestal ilusório e o que vejo é constrangedor. Quero crer que as árvores não pensem com frequência. Que triste seria pensar e não poder deslocar-se. As raízes pivotantes se estranhariam. Eu não estranho minhas raízes. Mas estranho poder deslocar-me.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Prazo de validade

No tempo em que todos precisavam de slides, fazê-los era uma experiência ótima. Craque no Power Point daquela época, conseguia preparar uma aula em tempo recorde - montava a apresentação, fotografava com a Palette, levava pra revelar e montava os slides em menos de 24 horas. Tá certo, era bem estressante, mas foram dias muito bons.
Todo mundo aprendeu a usar o Power Point, que se modernizou e tornou o trabalho mais fácil. Daí os slides ficaram obsoletos... O charme era usar a apresentação no próprio computador. A princípio dava muito erro, às vezes na conecção do  projetor  com o computador, ou no disquete ( lembram dele?) ou no CD. Agora todo mundo tira de letra.
E aconteceu tudo no sentido inverso. Enormes e inúmeras coleções de slides, coisas muito boas e únicas precisavam ser acessíveis no computador. E eu passei a escanear slides. Com a ajuda do fabuloso Photoshop  limpava mofo, riscos e até eliminava excessos  do original. Depois montava a apresentação no Power Point. Foi muito divertido e gratificante, vi  imagens belíssimas, ilustrações médicas e veterinárias de primeira linha.
Atualmente minha Palette e meu scanner específico para slides  estão obsoletos e aguardam alguma empresa que recolha lixo eletrônico aqui no Rio. Tenho tanta coisa ultrapassada, que as vezes quero implodir tudo, para brotar, tipo fenix!
Com meu  scanner novinho, realizo um projeto bem antigo: escanear as melhores fotos da minha história. São tantos àlbuns... Mas estou determinada. Gosto  de acabar o que começo. Sonho com um daqueles porta-retratos eletrônico. Enquanto isso estou usando um notebook, que está em seus estertores, como porta-retratos-protetor-de-tela,  única função cabível para o coitado.
Estou  preocupada.... Sinto que eu também estou um pouco, digamos, vencida.
E eu que nem sabia que as almas também tem prazo de validade.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fazer de conta

Faço de conta por um dia e brinco de solidão.
Meu apreço por carinho excede qualquer palpite.
A tarde está muito agradável, um perfume de mel se espalhou e adoça os outros sentidos.
Uma espécie de abstinência... não estou concentrada. Está faltando, está faltando.
Arrumei o quarto logo, começo o dia ao fechar a cama da noite.
Preciso comprar travesseiros, toalhas e roupas de cama. Não, não preciso...
Pensei que fosse fome, sede, comi umas amêndoas, tomei chá...
Um banho e estou perfumada e quentinha. 
Que falta é essa. Quem falta vir.
Andei pela casa à procura - esqueci de pagar alguma conta.
Alguém aguarda uma confirmação, preciso telefonar.
Confiro a tranca da porta, abro as janelas para o mar.
Minuto a minuto, eu que fazia de conta, estou me sentindo só.

domingo, 22 de agosto de 2010

Viagem de prazeres

A última vez que fui a São Paulo foi proveitosa. Aprendi novas receitas (que copiei depois de prová-las), conversei muito, abracei muito, caminhei e fiz novos amigos.
De volta ao Rio, depois de passar pela tristeza de perder meu gatinho que por 15 anos, foi presença constante e querida, senti uma atração aguda pelas coisas de comer. A tristeza e a saudade, de minha mãe, dos meus irmãos, da minha Martha e da Helena me fizeram sensível aos pormenores.
Saí cedo e fui ao supermercado. Comprei farinha integral, mel, um belo filé de salmão e por último passei no açougue.
"- Voce tem cupim?"  - e o rapaz de branco, máscara cirúrgica e luvas que seguravam um facão: - "De que tamanho?"
- "Pequeno de preferência, quero três!"  (Fazia parte da receita que o Thê me ensinou, preparar logo três pequenos.)
Ele fez uma careta e perguntou - " Cubinhos de que tamanho?"
-"Nãããão, cupiiiiimmmm~"  - e mostrei as minhas costas para ele saber que eu me referia à giba do boi.
-"Ah, não. Não trabalhamos com este tipo de carne." E virou as costas lisinhas para mim.
Fui embora constrangida, eu que já estava debulhando lágrimas por qualquer caixinha de fósforos.
Passei em outro supermercado e achei o cupim maturado na prateleira de carnes, bem do jeito que eu queria.
Em casa, temperei o peixe que assaria para o jantar e caprichei nos temperos dos cupins que ficaram marinando até o dia seguinte.
O salmão estava ótimo ainda mais com as torradinhas com creme de espinafre que fiz para acompanhar, trazendo o irmão querido e a mamãe  para a mesa, nessas duas receitas de colorido tão harmônico.
No dia seguinte, quando fui para a cozinha estava disposta como o aprendiz de feiticeiro.
Coloquei os cupins para selar e depois deixar cozinhar por 50 minutos na panela de pressão.
E resolvi fazer o bolo de banana, receita com ingredientes especiais que a Beré me deu : a farinha integral, o mel e eu não resisti, coloquei por minha conta um pouquinho de açucar mascavo. As bananas estavam no ponto: " Bem maduras!" Amassei com  displicência, misturei à massa e aí...dei uma guinada. Resolvi usar as formas de cupcake, um dos presentes que ganhei da Tata; e coloquei as forminhas de papel que a Luciana comprou em Uberaba para mim. Com uma colher enchi até a metade das forminhas e coloquei no forno. Em pouco tempo o cheiro doce dos bolinhos se misturava ao perfume da carne temperada cozinhando, ah eu me sentia literalmente em casa.
O melhor de tudo foi conseguir reunir no meu pequeno fogão, detalhes inesquecíveis de uma viagem cheia de prazeres.
 






quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Low battery

Caminhei e ouvia a trilha sonora do seu cotidiano.
Estive encantada.
Foi uma viagem imaginar seu humor, seu sentimento quando gravou cada canção.
Uma música e eu voltava no tempo, outra, instigante, nem reconhecia.
E as que eu tive que cantar junto? Assim, no meio da rua, bem alto,  estalando os dedos no ritmo, feliz, sem perceber em volta, a não ser a grandeza do dia de céu esfuziante e azul.
Foram várias horas e só terminou quando fui informada: "low battery".
Valeu a pena!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Saciedade

Gosto das pessoas que continuam.
Assim, uma frase depois da outra.
As vírgulas alinhavam, os pontos vão dando os nós.
Gosto daqueles que opinam com serenidade, apenas colocam seu ponto de vista.
Mas adoro em particular aqueles que me veem passar com pressa e acenam tranquilos e saciados de vida.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Trânsito

Um corpo descorado desponta da penumbra quando rezo.
Olhos fechados, vejo as pálpebras róseas e translúcidas e nada mais.
Vou abri-los agora e desejo com ardor que o dia seja claro e cristalino.
Porque o céu sem cantos gira a minha volta, eu perco a direção.
Num canto qualquer da vida esqueci minha identidade e tenho que procurá-la fazendo o caminho inverso.
Por onde começo?
Retroceder, refazer os passos à procura de, enquanto o tempo continua passando, é passado? 
Procurar o que deixei, onde ainda não fui, é tempo perdido?
Entretida nas teias da retórica atravesso na passarela e vejo abaixo de mim o trânsito confuso e denso desta manhã.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Deixa estar

Algumas pessoas elegantes ignoram desaforos; eu não sou elegante.
Frustram-me quando dizem que sou folgada, que nada faço da vida.
Fico remoendo, cozinho em fogo alto, mastigo desagradável e sofro.
Quem tem a ver com isso não se importa.
Queima meu coração o desastre de ser.
Ando um pouco triste, é verdade, mas é uma lástima ver a vida passar silenciosa e calma e gente nociva procurar  conflitos.
Quero ficar em paz, pode ser?
Não diga asneiras, vá vomitar seu ódio no banheiro público, que dejetos extravagantes vão chegar ao mar da mesma forma que as flores murchas e os párias desafogados.
Não importa seu sentimento e sua revolta.
Depois de um salto e do mergulho, deixo estar.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Querido


terça-feira, 10 de agosto de 2010

O último sono

-"Tita, estou com o gatinho da Helena, ele é cinzinha, tem o peito e as luvinhas brancas e olhos verdes."
Algumas horas depois a Tiaberé tocou a campainha e eu chamei a Helena para ver pela janela. "Olha, filhinha ela está com uma caixa, o que será? Vai abrir a porta pra ela."
Helena desceu as escadas levando a chave do portão que, ela já sabia, tinha um "joguinho" para abrir.
E ouvi a voz da Tice subindo as escadas com ela que dava risadinhas deliciosas.
As duas entraram com a caixa e de lá saiu um gatinho minúsculo e assustado.
Helena estava encantada, olhos brilhantes, carinha vermelha e feliz.
Uma senhora japonesa de Osasco era a dona da ninhada de  vira-latinhas. Quando entregou o Felipe disse  que queria que ele fosse muito amado e bem cuidado ou  deveríamos devolvê-lo. Nunca me esqueci disto.
Passamos por tanta coisa juntos...
- O Miguel foi comigo  ao veterinário. Pedi  que levasse o Felipe  no colo que eu iria passar de carro na esquina  e seguiríamos juntos. Ao parar o carro pude ver o Miguel desesperado com o gatinho mais desesperado ainda subindo-lhe pelo pescoço! Antes de chegar ao consultório, paramos no primeiro pet shop do caminho e compramos uma bela caixa de transporte que temos até hoje.
- A visita à Dra Márcia para as vacinas e um primeiro exame - "Olha só, ele tem o rabinho quebrado!"  Explicou-nos então que ele deveria ter ascendência de gatos siameses, raça em que é comum rabinhos partidos, ou então quebrara-se na confusão dos muitos filhotes embolados na barriga da mãe.
- A difícil decisão de castrá-lo para que não marcasse teritórrio em cada canto e eu que não sabia nada de animais fui gostando muito do assunto. Vi os efeitos da acepromazina pela primeira vez - ele olhava para mim, fixamente e o veterinário perguntou, ele já está sedado? e eu: Não, ainda está de olhos bem abertos!!!
E aprendi, fui  aprendendo com ele.
Conheci uma sala de cirurgia veterinária, observei a forma de prender o bichinho para o procedimento e assisti boquiaberta ao evento tão simples e objetivo.
Viemos para casa e rimos muito do pobre, tontinho pelo efeito da anestesia tentando andar pelo corredor e já o amávamos tanto; ele  nos tornou uma família mais feliz. 
- Helena telefonou para o Miguel: "Papai, o Felipe sumiuuuuuuu"  e toca a chorar!  Havíamos procurado por toda parte ele tinha desaparecido e procuramos de novo e de repente ouvimos um miadinho bem fraco, que vinha de onde? De onde?  Na desordem do quarto da Helena, cheio de brinquedos, roupinhas e livros havia uma gaveta de escrivaninha aberta. Ele havia se enfiado atrás da gaveta e poderia ter sido amassado se alguma alma mais organizada passasse por ali.
Foi o primeiro dos muitos resgates.
- Teve o telhado altíssimo do vizinho da frente que eu escalei sem medo até voltar a colocar os pés no chão com o gato no colo e começar a tremer;
- O telhado da área de serviço da vizinha de baixo de onde foi pescado pelo Miguel com uma rede improvisada;
- O telhado da casa da esquina onde ele sobreviveu três dias de inverno e chuvas às custas de pedaços de carne que  a boa alma que morava embaixo, já saturada de tantos miados, jogava pra ele;
- A grande aventura no Rio quando ele sumiu por quase uma semana e foi encontrado por acaso no telhado de um sobrado de pé direito bem alto, que ficava ao lado de um terreno baldio. Neste terreno estava um felino desconhecido que um caçador de gatos imaginou que pudesse ser o meu. Às três da manhã, Miguel e eu fizemos estrepolias dignas do Cirque para resgatá-lo;
- As patadas na Poli e sua liderança absoluta entre os Rottweilers da casa;
- O salto que deu sobre o dorso da Poli, feito um tigre sobre um búfalo quando ela cismou com o Fred - o outro gato - que ele nem gostava muito;
- Os inúmeros passarinhos, borboletas, morcegos e pererecas que capturou e veio nos oferecer ou comer nos  escondidinhos da casa;
- A hepatite tóxica  depois de ter comido o rabo de um calango provavelmente temperado com agrotóxicos;  - O soro de hidratação no colo da veterinária e a carinha de fastio e raiva do gato adoentado;
- A noite que passou internado quando tripudiou todos os funcionários da clínica e em meio aos rás e fus, ao ouvir minha voz, miou feito um filhotinho;
- A terrível esporotricose, que eu já tinha visto em pessoas e que começava a se tornar epidêmica entre os gatos no Rio. O tratamento demorado e zeloso - salvá-lo, acreditar nele e em mim, não desistir.
Foi a esporotricose que diagnostiquei clínica e microscopicamente que me fez pensar em cursar uma nova faculdade e abrir de vez meu coração e os livros de veterinária.
O aprendizado, as novas amizades, todos os outros bichos, várias espécies, vários tamanhos.
Helena e seu gato juntos, mais de 15 anos salvando vidas, pricipalmente a minha.
Hoje que estou velando o último sono torporoso e dispnéico do meu estimado amigo, ainda quero que ele fique mais um pouco com a gente. Nunca desisti dele. Mas hoje não posso mais.
Ele precisa partir, vai gato,  ser  anjo na vida.
Nos veremos na quarta dimensão, onde me disseram que os gatos são só o sorriso.



sexta-feira, 6 de agosto de 2010

vento vultoso

vem vindo um vento vultoso chacoalha e choca-se ao chão
ao meio dia é noite um cinzento céu envolve a terra plana varrida
louca tempestade faz de conta que é tufão rodopia no telhado que cai coitado em telhas partidas
despedaçados estão também meus sentimentos  meus argumentos  meus comentários
uma cola adocicada faz as vezes de curativo; eu canto no meu canto enquanto espero clarear

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Portas

 Eu nao sei ainda mas hoje foi a última vez que vim ver a rua.
Estava no jardim e quando abriram o portão, quis ver lá-fora. Olhei para os lados e para a frente, alerta, olhos esbugalhados procurando  gatos,  cães ou qualquer outro sinal de perigo. Nada havia. Fiquei na soleira  impedindo que fechassem. Não gosto de portas fechadas. Quero  estar sempre do outro lado.
Algumas portas se fecharam para mim nas últimas semanas. Não sabia que seria desta forma, quero tanto ainda...
Estou cansado demais para reclamar, sinto uma tristeza infinita, não posso voltar a ser.
Penso que talvez volte pássaro. Qualquer ser que tenha a vida breve e fulgurante, um raio, a luz.
Agora preciso dormir, vou sonhar com você.
Deixe a porta aberta


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Bagunça

Não reparem na bagunça.
Meus cupcakes estão assando e eu tenho mãos cheias de massa.
A batedeira derriça restos de leite e de ovos; a farinha se esparramou até pelo chão.
Assim de improviso testo uma receita de cupim:  marinei em bom caldo e deixei a descansar na geladeira.
A minha coalhada não virou, apesar da boa isca. Disseram-me que é a temperatura do leite. Fria demais ou quente demais. O segredo é poder segurar a vasilha com o leite aquecido, sem queimar-se. Eu que jamais avaliei uma testa potencialmente febril por não confiar na sensibilidade térmica das minhas mãos, como poderia confiar no teste da travessa?  Será que matei os bichinhos?
Na falta de coisa melhor para fazer com aquele leite morno e insosso, vou aproveitar a quentura do forno depois de assar os bolinhos. Deixo a porta do forno aberta e tampo a entrada com um pano de prato úmido. Se a temperatura estava baixa e os bichinhos estão vivos, uma aquecidinha e lá está Dona coalhada! Foi o Edmur quem me deu essa dica, aliás aprendi muito sobre culinária e o prazer de compartilhar.
Compartilhamos: comidas e bebidinhas, muitas lembranças, cobertores e bancos da praça, divertidos labradores e a bagunça providencial e anônima das grandes famílias. 

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Ser alegre

Queria ser alegre hoje, postar alguma coisa engraçada e divertida.
Mas tudo são despedidas.
Assim fica para amanhã ou depois um momento animado.
Estar sozinha e ficar comigo deixou-me hoje um pouco triste. Mas não vou desistir.
Espero com paciência que as horas passem, que a noite passe, porque o tempo passando ajuda a acalmar a tristeza.
As lembranças novas que  tenho agora vão se misturar às lembranças dos outros anos. De tal forma que em pouco tempo teremos que fazer contas para situar as vivências. Mania de classificar, porque não tem importância quando as coisas aconteceram. Mesmo porque, das coisas boas é sempre bom pensar que estão no futuro. E aí fica muito mais fácil esperar que amanheça.

domingo, 1 de agosto de 2010

Balanço

Acabaram-se as férias, as festas, os encontros.
Esvai-se lentamente, todo dia um pouco, a vida do meu último gato.
Olho para a frente, em busca do futuro que está ofuscado pela luz intensa do sol a pino.
Mas há um futuro.
Tento deixar os acontecimentos atuais em um caldo, para que se apure o gosto e eu possa aproveitar sua essência.
Amanhã é o futuro, mas e depois de amanhã? Sinto a pressa da viagem, preciso chegar.
Enquanto isso, rezo um pouco. Pelos que foram, pelos que ficaram.
Hoje, quero voce perto de mim, vamos conversar coisas de casal.
Que saudades senti.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Philip

Você me diz que falo demais e que não sei ouvir.
Que minha conversa é fiada e está pendurada no bar com algumas cervejas.
Na verdade faço um solilóquio público.
Sou tudo isso que falo, penso enquanto falo, sou eu nas origens, pedra bruta.
Por isso, querido, nem seja vaidoso de achar que só você me escuta.
São incontavéis as criaturas que passam aqui pela sala, sentam para tomar um café e conversar.
Só uma delas me assusta um pouco, porque aparece quando você está, sem a menor cerimônia. Atravessa o espelho do corredor e quando sinto a presença, quando vejo sua sombra, ela já saiu de cena.
Como não se aproxima, acredito que seja surda e um pouco tímida.
Sinto uma vontade estranha e intensa de aprender LIBRAS.
Ontem ela passou tarde da noite e seguiu em direção ao quarto...
As estantes com livros! Com certeza é para lá que ela vai e entra em um dos volumes. Ali estão os seus e os meus livros preferidos, aqueles que a gente quer ter por perto porque seus fragmentos surgem  no meio da nossa prosa.
Se eu for até lá e folhear os livros talvez a encontre presa a uma frase mais complexa. Mas que livros ela prefere? Os seus? Os meus? Aqueles anacrônicos  resgatados pela lembrança ?
Tomara que ela não venha conversar comigo sobre os vulcões. Entendo sua paixão por eles mas são tão violentos... Olho para aquele volume enorme, pesado, aquela capa laranja vulcânica e suspiro, já cansada. Espero francamente que ela esteja lendo Philip Roth. Apesar de ele estar a cada livro mais  depressivo, falar sobre a limitação do corpo, sobre a maturidade e sobre envelhecer tem tudo a ver comigo.


domingo, 25 de julho de 2010

Pontos de crochê

Escrevi para voce umas histórias feitas em pontos de crochê. Cada ponto é uma letra, cada desenho, uma palavra e cada carreira uma oração. Os parágrafos são as carreiras cheias, impermeáveis.
Escrevi pontuando, de maneira displicente e obstinada, espelho do meu pensamento, que é assim mesmo : uma contradição. Mas é que quando vem a ideia, escrevo do começo ao fim, quase que de uma vez, porque concluindo evito perder o fio. Na releitura poucas vezes  substituí  uma palavra, ou acentuei  uma proparoxítona esquecida. A displicência é meu jeito de ser, vou jogando e brincando com a vida, o capricho não é tão importante para mim como é a sinceridade. E voce bem sabe disso.
Usei  linha de algodão, que é bem macia e fica ainda melhor depois de lavada diversas vezes. Com o uso, as pontas vão se desfazendo, mas os textos não são lá nenhum pergaminho valioso. Fiz para o dia a dia, está mais para um caderno de menino hiperativo, que precisa ser passado a limpo.
Parece pouco para durar o ano todo... Mas voce vai ver que no avesso a  história é outra, e outros textos serão lidos se a página estiver de ponta-cabeça. ( Ponta-cabeça é tão paulistano, acho que prefiro o nosso "mineirismo" - de cabeça para baixo.)
São para usar na cozinha, para enxugar as mãos ou qualquer outra coisa mais pungente; e para pegar a travessa quente com sua refeição.
As entrelinhas ! Quase que me esqueço delas. Ali estão alguns tesouros. Vá procurá-los se estiver triste, se a saudade doer demais, se precisar de um amigo. Coloquei ali palavras de conforto e poesia; algumas piadas e as risadas para fazer coro com as suas; e também os mimos das nossas conversas tão boas enquanto estivemos juntas.
Mas isso tudo é só o começo. Fico por aqui, mas vou continuar pontuando meu crochê.
Mesmo que seja só uma forma de passar o tempo, até a próxima vez.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Cobertor

Vem comigo, me dê a mão e enquanto canto vamos fingir que hoje é ainda pequeno para tudo que podemos conquistar. A vida , a das entrelinhas, é muito mais saborosa. Prove este peixe, esta posta, aprove o vinho e depois quem sabe não vamos dormir enroladinhos nos cobertores azuis que ganhamos de presente?
Por falar em presente, bom dia!

terça-feira, 13 de julho de 2010

Ponto

Esperam pacientes e em fila no ponto de onibus. Há tristes,  conformados e os olhares distraídos daqueles que a vida carrega de qualquer maneira;  folhas mortas na correnteza.
Adolescentes encostam suas mochilas e um pé na parede do prédio mais próximo ao ponto. Têm urgência em chegar ao evento seguinte, ao ponto seguinte, ao dia.
Um colega de classe, a menina bonita, a sirene do colégio, o bedel.
Quando um onibus chega, os olhares distraídos nas janelas devolvem.
E quem esperava novidades acabou esquecendo os bilhetes em casa.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

silêncio

o silêncio as vezes precede um tsunami... os bichos sentem; eu também... está silencioso demais...
tome cuidado, sinta o vento, cheire o tempo...
o que se passa...
porque tanto silêncio

terça-feira, 22 de junho de 2010

vinte e dois

Há vinte e dois anos  foi o dia mais intenso que vivi.
Desde então não preciso que me levem, eu vou.
Nem que me animem, tenho o riso frouxo e passo ao largo das frustrações.
Vou correndo, aflita por assisti-la viver.
Como é lindo, como é linda, como é bom!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Fragilidade

Foi um momento tenso.
Ela chamou, mas ele queria brincar e fugiu pelo portão entreaberto.
O carro freou bruscamente e fez um barulho irritante até parar completamente.
Na rua, o cãozinho tremia de medo.
A menina foi buscá-lo muito assustada também, mas sentia alívio por vê-lo sem ferimentos ou dores.
Agradeceu à senhora que dirigia o carro, que também estava em choque com o susto.
Entrou em casa e com o cãozinho no colo subiu até seu quarto.
Chorou um pouco abraçada a ele e depois suspirou bem fundo.
Compreendia de forma aguda e absoluta a fragilidade de existir.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Felipe

Pela manhã, acordo apreensiva e abro a porta do quarto. Espero vê-lo no corredor, ver se ele me aguarda.
Dá bom dia, barulhento e vai na frente, mostrando o caminho até a vasilha, vazia de comida.
Reclama da minha demora, sente fome, sente.
Confiro a casa e procuro sinais de seus enjoos e sofrimentos. Se está tudo bem, depois que tomamos café faço com que engula um pequeno caco de comprimido para que possa suportar a próxima refeição.  Tem comido o que quer, ofereço tudo que posso, em pequenas e várias porções durante todo o dia.
Ele sobe no encosto do sofá e fica ali esquentando ao sol. Fecha e abre os olhos, uma fresta apenas e verifica se estou ali. Às vezes me olha tão profundamente que eu não consigo desviar o olhar; devolvo a mirada e tento compreender. De repente vem para o colo e fica muito tempo, se estiiica, apoia o queixo em meu joelho. Atualmente tem preferido ficar quieto no colo, não quer que o toquem como antes. Será que sente dores? Quando compreendi que tocá-lo incomoda, passei a servir apenas de anteparo. Sinto seu corpinho quente em minhas pernas e quero congelar este momento para sempre.
A cada dia mais magro - a metade do que já pesou - e cada dia menos disposto, mas me acompanha pela casa. Ainda quer ir à rua, mas quando abro o portão duvida se sai ou se fica. Acaba voltando para o jardim, onde se sente mais seguro.
Ainda repreende o cachorro, que não liga, nem compreende.
Eu compreendo. E a cada grama que ele perde, perco um pouco de mim.


sexta-feira, 4 de junho de 2010

Soberanos

Não, nada disso!
Nem fique triste, a tarde está linda e eu estou convidando você para irmos ver as ondas.
Espie as tatuíras na areia e os caracóis fingindo que vivem.
Olhe para trás, para o tamanho do passado, esquecemos mas existiram todos os segundos e as horas.
Estou repleta, estou completa, sei da minha história e gosto dela.
Não vou desistir, mais importante que censurar é poder dizer: Isso mesmo, muito bem, você sabe fazer, você sabe crescer, isso é autêntico, isso é edificante e lindo!
Assim são construídos os soberanos, aqueles que vão reinar.




terça-feira, 1 de junho de 2010

culpa

Este friozinho nublado pede cobertor de preguiça.
Mês de junho, já sinto os cheiros.
Pé de moleque, arroz doce, curau, pipoca.
Nenhuma confissão nos livra dessa culpa  adocicada.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Felipe

Um dia, um gato chegou e foi ficando. Faz quinze anos e ele ainda fica!
Bom garoto, companheiro demais, sempre sentiu meus desconfortos e doenças e vem miar no meu colo; ele me consola.
Fico animada com ele, funcionamos como um casal.
Agora que está bem doente, olho para ele e penso: como vai ser possível?
O que vou fazer sozinha sem a sua companhia ?
Essa é a maior tristeza de ter bichos: Eles morrem antes, envelhecem antes. Assim, ter um bicho ainda que seja desde filhote significa que ele vai embora antes de nós e somos nós a lidar com a perda.
Assim funciona a natureza.
Seria bom se pudéssemos todos desligar juntos!
Como quem desliga o rádio. Como quem faz uma escolha consciente.